A internet entrou em polvorosa com a notícia de que o humorista e apresentador Danilo Gentili pudesse pegar 6 meses de prisão. A prisão seria a pena legal para a condenação em primeira instância do julgamento da queixa-crime movida pela Deputada Maria do Rosário. As questões que mais se levantaram sobre o caso giram em torno da Liberdade de Expressão e a Censura do Estado.
Muitos influencers famosos se manifestaram a respeito, muitos julgando a pena exagerada, mas quando os discursos se reduzem ao embate Liberdade de Expressão e Censura do Estado, trata-se de uma batalha perdida. Não nos parece que alguém, em sã consciência, pudesse ser contra a Liberdade de Expressão e a favor de qualquer tipo de Censura Estatal. O povo brasileiro é escaldado por mais de 20 anos de arbitrariedades para saber que isso não faz sentido, apesar dos movimentos intervencionistas que vem se multiplicando desde 2013.
Essa redução se assemelha a quando se quer discutir o Programa Escola Sem Partido. De saída, seria uma loucura ser a favor de uma escola COM partido. No entanto, depois de muito desgaste e rótulos atribuídos de lado a lado, começa-se a entender que discutir o Programa Escola Sem Partido não parte de seu oposto desejo de uma escola partidária. Assim como discutir a punição de Gentili não parte da aceitação de que o Estado deva censurar o cidadão em sua inalienável liberdade de expressar-se. Se deixarmos nos levar por esse Espantalho, só cumpriremos agendas ideológicas.
A Censura
A primeira coisa que merece nossa atenção é a palavra Censura. Ao longo do tempo esse nome adquiriu conotação ligada às práticas da Ditadura Militar, onde censurar era proibir, coagir pela força, acompanhada inclusive, de ameaças de prisão ou tortura. Um artista ou qualquer cidadão vítima da censura tinha o dever de ficar calado. Na Ditadura não havia liberdade de expressão e só podia ser dito aquilo que era permitido pelo poder vigente que, invariavelmente, decidia na hora e através de agentes do Estado sem nenhuma qualificação para tal julgamento. Entendemos que essa arbitrariedade e todo tipo de autoritarismo deva ser repudiado em todos os seus níveis.
No entanto, a palavra Censura, assim como os nomes Voto de Censura, Moção de Censura são termos que possuem outras conotações, tanto no trato comum algumas vezes, quanto, e principalmente, no meio legislativo, embora sejam menos usuais e com menos peso do que adquiriu a conotação histórica mais comum. Uma nota de repúdio, uma discordância pública e até um olhar reprovador ou uma bronca que um pai dá no filho arteiro se constituem atos de censura. Nem de longe, portanto, se referem à censura estatal que Gentili alega estar sofrendo.
Nos regimentos internos das Casas Legislativas brasileiras (Senado Federal, Câmaras de Deputados e de Vereadores), estão previstos Votos de Aplausos, Congratulações, Louvor, Solidariedade ou Censura a serem dados pelos seus integrantes a membros da sociedade e até a entidades, nacionais e do exterior. Quando o requerimento tem a unanimidade da casa, ele passa a se chamar Moção, mas quando somente um ou alguns legisladores assinam, ele se chama Voto. Se um ato, entendido assim por algum parlamentar, merecer algum repúdio da instituição, pode-se requerer um voto de censura a seu autor, da mesma forma que se pode requerer um voto de louvor para alguém que tenha feito algo digno dele. Censura, nesse caso, se equivale a reprimenda, um repúdio, um desagravo.
Em uma breve busca no site do Senado Federal, por exemplo, vemos que em Julho de 2009 foi apresentado Voto de Censura contra o Presidente Lula devido as declarações do mesmo sobre senadores que seriam “bons pizzaiolos”. O Voto de Censura é uma forma do Senado e das Instituições Parlamentares do Brasil repudiar falas e atos civis que os atinjam e afetem tanto sua imagem institucional, quanto estejam em desacordo com alguma política consensual interna da instituição. É algo previsto em seu regimento interno. E não passa disso. Não tem efeito judicial, embora possa ser arrolado como prova a partir da forma como se demonstra sua necessidade.
No ano de 2008, a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado aprovou Voto de Censura contra o Parlamento Europeu pela aprovação da nova lei de imigração. A aprovação aconteceu porque a justificativa trazia o desacordo que a medida impunha aos tratados e convenções internacionais de proteção aos direitos humanos. Na mesma seção foi aprovado um Voto de Congratulação à participação brasileira nos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Pequim. Trata-se disso apenas: a manifestação institucional a que os representantes eleitos do povo brasileiro têm garantido por seus estatutos internos.
Em Junho de 2016, após a Senadora Regina Souza ter sido alvo de preconceito do humorista no Twitter, o senador Paulo Paim resolveu emitir um Voto de Censura ao comediante. Como vimos, esse documento nada tem nada a ver com impedi-lo ou proibi-lo de falar, mas de um repúdio à sua fala preconceituosa. Gentili, manipulando sua audiência e a opinião pública, quis dar a entender que estaria sendo censurado e impedido de falar, porém nunca houve isso.
Em vídeo divulgado em suas redes, Gentili ridiculariza o documento de repúdio do Senado por estar escrito “Senado Federel”, mas em nenhum momento admite ou retira as palavras preconceituosas dirigidas à senadora Regina chamando-a de “tia do café”. Contra o Senador Paim, Danilo não diz praticamente nada. Chama de analfabeto quem escreveu o envelope, mente dizendo que é alvo de censura do Estado, mas pouco ou nada diz sobre Paulo Paim. Seu alvo, ao que tudo indica, parece ser preferencialmente as mulheres.
No mesmo ano, quando um tweet seu foi trazido à tona no caso do estupro coletivo no RJ contra uma garota de 16 anos, Danilo processou na justiça uma jornalista da Veja e o apresentador Trajano dizendo que essa associação atentava contra sua honra. Perdeu em ambos os processos, porém se a justiça tivesse dado ganho a ele, como seria sua reação à prisão de ambos?
Uma ótima matéria do The Intercept Brasil detalha esse e outros casos em que Gentili usa o mesmo expediente que, hoje, ele protesta e se vitimiza. Desta feita, porém, Gentili foi condenado não porque se recusou a se submeter a um ato de censura que o proibia de fazer aquilo que ele chama de humor, mas sim porque incorreu em crime de injúria na forma da Lei. O mesmo que ele recorreu quando fora contra si. Gentili jamais foi censurado na conotação que ele quis dar, embora tenha tentado e conseguido manipular a opinião pública para dar esse sentido ao ocorrido, ao mesmo tempo em que aciona a justiça sempre que se vê atacado em sua “honra”.
Como podemos perceber, seus alvos preferidos parecem ser as mulheres. Sua reação quando recebeu uma notificação extra-judicial da Câmara dos Deputados para que se explicasse acerca de alguns Twitts publicados contra a Deputada Maria do Rosário, que se sentira ofendida por ele, toda sua misoginia veio à tona, com ofensas à sua honra com conotação sexual e expondo toda a sua macheza ao esfregar o envelope em sua genitália antes de enviar de volta mandando a deputada enfiar a notificação em sua bunda.
Essa atitude está prevista em nosso Código Penal em seu artigo 140, que tipifica o crime de injúria da seguinte forma:
O que realmente importa…
Se conseguimos demonstrar a manipulação e a hipocrisia de Danilo Gentili até aqui, talvez seja hora de discutirmos o que realmente importa. Da mesma forma que há sutilezas quando se indaga acerca dos limites do humor, há diversas sutilezas quando indagamos sobre o que é ofensivo ou não. Onde estaria o limite entre perseguição política com cerceamento da liberdade no exercício de cargo público e o humor de Danilo Gentili? Onde estaria o limite entre a liberdade de dizer o que quiser sobre outrem e o direito à dignidade da pessoa humana?
O que motivou a notificação da Procuradoria da Câmara dos Deputados para Danilo Gentili foi esse twitte publicado por ele ironizando Maria do Rosário:
Ao receber a notificação da Câmara, Danilo tinha algumas alternativas ao que fez: justificar seu post, demonstrando que se tratava de uma ironia e uma suposição, já que Maria do Rosário teria defendido José de Abreu na confusão ocorrida em um bar japonês em São Paulo, quando, bêbado, o ator cuspiu em um casal que o ofendia. Poderia retirar o que disse, reconhecendo que, mesmo ela tendo defendido o ator, ele, Danilo, não poderia prever o que ela faria na suposição que ele construiu, ou então, simplesmente, não responder nada e deixar seus advogados cuidar do caso.
No entanto, Gentili resolveu ser sexista, misógino e ofensivo (chamando isso depois de humor), rasgando a notificação, chamando uma mulher de PUTA, esfregando a notificação picada na genitália e mandando de volta recomendando que ela enfiasse tudo na bunda. Não parece-nos, sob qualquer parâmetro razoável, que se possa olhar o caso como se tratando de humor. Ele simplesmente manipulou para capitalizar ideologicamente o ocorrido. Embora procurasse ser irônico ou sarcástico, Danilo atacou covardemente uma pessoa, uma cidadã, independente da função que exerce.
Talvez, quem esteja defendendo Gentili possa considera-lo mais humano que Maria do Rosário, pois coloca seu direito à Liberdade de Expressão acima da honra e da dignidade de Rosário. Ou então consideram que ela merecesse ser destratada assim por ser política ou mulher. Será que essa postura difere muito daquela que considera que ela não deva ser estuprada porque não merece? Mas nesse ponto, o próprio Danilo pensa diferente, em show recente fez uma piada dizendo que discordava de Bolsonaro, pois Maria do Rosário mereceria sim ser estuprada.
Por que sobrepor uma liberdade a outra? Por que a liberdade de se expressar é superior à liberdade de ter sua honra e dignidade respeitada?
Cabe, ao final, talvez, uma reflexão sobre Liberdade. Não nos parece que Liberdade seja algo a ser vivido pela metade. E isso, paradoxalmente, significa abrir mão de uma liberdade tão irrestrita que possa afetar a liberdade alheia. Um local onde apenas alguns são livres e outros não, não é um local livre. Liberdade é algo que não existe de forma plena se não for inteira e ser inteira significa que cada parte precisa se limitar para a liberdade geral de todos. Para quem pensa que liberdade é apenas um direito individual, não lhe parece importante a liberdade de todos, a não ser que ele se veja tolhido da sua. Hipócritas…
O crime de injúria é cercado de polêmicas sobre sua natureza considerada subjetiva. Dos 35 países que compõem a OEA (Organização dos Estados Americanos), cerca de apenas 18% não criminalizam as ofensas contra a honra (incluindo os delitos de difamação e calúnia), mas 82% criminalizam. Dos que criminalizam, muitos começam um processo de abolir a privação de liberdade para esses crimes, direcionando-os para serem apenados de forma pecuniária, ou seja, através de multas, direito de resposta, etc. Essa mudança vai ao encontro de muitas políticas de esquerda que trabalham o desencerceramento. Que Danilo deva ser punido, parece não restar dúvidas se levarmos tudo o que ocorreu e como ocorreu em consideração. Não se tem dimensão do quanto ele, fazendo o que faz e devido a influência que exerce, contribui para a situação e a própria violência contra a mulher em nossa sociedade. Sua prisão pode ser exemplar, mas pode também ter o efeito contrário se não vier acompanhada de uma análise das consequências e das mudanças socais desejadas. Será que sua prisão teria essa dimensão?
Fica a reflexão. Abaixo o vídeo do Canal Gambiarra MiniDoc que usou esse texto como base.
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