Convido palavras a estarem…

Desenho - Palavras: Aline Brasil

As palavras são difíceis de tocar. São transparentes, turvas, feitas de camadas. Tentamos, mas o corpo é quem realmente sabe de forma mais profunda o que a palavra apenas esbarra. Eu tenho um segredo: o meu nome não fala sobre mim. Mas temos dificuldade em aceitarmos essa reflexão. Afinal, o que faríamos com a nossa crença histórica e irresistível de que a palavra seja divina ou verdadeira, completa e fechada em si mesma? É desconsiderando o corpo que abandonamos o caminho da escuta, a porta de entrada e saída da incerteza e pisamos um chão cujas pedras cimentadas são feitas de verdades inquestionáveis. As palavras deixam de sentir e passam a engessar na tentativa de dar conta do que gostaríamos de ouvir. Mas, de novo, o corpo é quem sabe de um mundo sem previsões e a palavra é uma experiência sempre limitada dele mesmo.

Se falar é uma forma limitada de experimentar o mundo, palavra alguma tem atributo universal. Ela tem recorte e é dinâmica. A nossa carne reverberaria o mutável e o incompleto, mas com palavras de gesso ela ganha uma roupa, um modo específico de vibrar, se fixa e o que reverbera já está morto. Por que faríamos esse salto imbecil e acreditaríamos nele? Parece que não sabemos viver o corpo que fala, mas somos ótimos na fala que cala. Compulsoriamente ignoramos o corpo para que sejamos uma palavra que sequer existe. Não é a palavra livre, que experimenta, mas uma palavra obcecada pela fixidez em nome de uma paz resignada.

Oi! Tudo bem? Meu nome é… Eu não sei, mas sinto! Eu venho de… Talvez de longe, talez de perto. A novidade é que ainda respiro. Sinto tudo ao mesmo tempo. O calor do sol, o vento gelado, a triste lembrança de uma história de amor e o gosto de saliva em minha boca de outro corpo nesta manhã. Tudo está aqui, agora, pois nada quer ser apagado. Lembrei! Meu nome é Cansaço. Tenho andado me arrastando, porque digo, tento e faço e não há quem note. O mundo não me cabe! Sabe esse tom rubro desta noite que pulsa? Não sabe, né? Claro que não, só eu eu sei. E não sei de uma saber maior. Não sei de um saber completo. Não me sinto melhor que ninguém, só sinto. Vivo. Meu nome como dizia é Força… não, Resiliência… melhor, Luta… Ah, sei lá! Não caibo de novo em palavra alguma. Que bom! É tão bom não caber! Se soubéssemos… se não tivéssemos medo disso simplesmente não caberíamos e seríamos livres. Mas inventamos nossas liberdades ilusórias e nelas fincamos o nosso acordar e adormecer: a repetição de uma rotina morna ao extremo.

Quando temos a possibilidade de um diálogo rico com o outro escolhemos péssimos monólogos e sentenciamos: “Esta é a minha verdade! Você tem a sua e eu tenho a minha!”. E ficamos satisfeitos com as nossas velhas crenças sendo reafirmadas sem espaço algum para o movimento do pensamento, suas mudanças e superações. Agimos assim como se ter uma verdade fosse algum mérito. Essa postura aliás está muito presente em nosso tempo. Diariamente é o que temos tido que engolir: seres arrogantes e ignorantes pensando que são donos de alguma verdade e achando que assim são melhores. Patético!

Assumir a nossa ignorância natural parece algo horrível para as imagens externas sobre nós que teimamos em sustentar. Então inventamos que temos voz e que ela nos basta, que as palavras dizem tudo. Silenciamos o diferente com palavras de gesso. A gente adentra um terreno pouco fértil vomitando certezas a todo momento. A terra não tem o que germinar. Está tudo pronto, dito, assinado. Não somos afeitos ao diálogo e ao risco de vermos a nossa natural incompletude. Enquanto isso o corpo se debate e é ignorado. Sério! Como suportamos tamanha falta de ar?

No fundo sou este corpo que pulsa mesmo sem sentido algum pra isso. E digo, digo, digo…

É por tudo isso que precisamos nos apropriar da palavra resgatando a experimentação que ela é. Precisamos falar de outra forma. Haja jogo de cintura para a ressignificação de um corpo silenciado e de uma palavra que desaprendeu a dançar. Precisamos reinventar não apenas a palavra em si, mas trazê-la de volta ao lugar da qual nunca deveria ter saído: o corpo. Nessa tentativa é que, de repente, o corpo grita, chora ou fala palavras inexistentes. A loucura seria o primeiro passo para a sanidade.

Espere!…

Voltei! Só fui deixar o lixo lá fora com os escombros de deus e dos anjos. É por isso que estamos gritando feito animais raivosos, descontrolados, puro instinto de destruição e covardia. Porque nossas palavras já não suportam nada. Viraram vento e pó. Insistimos em segurar farelos nas mãos como se fossem rochas inteiras. Cegos. Burros. Viramos ignorantes completos e elegemos qualquer um para ser o nosso líder. Desespro puro! Despreparo completo para o que de fato significa viver. Não nos temos. Adormecidos, entorpecidos, matamos sem ver e morremos sem sentir.

Palavras são forças, são ressonâncias, estados que emitem sons. Não temos que entender, mas acolher. Sair da nossa zona de conforto pra habitar a floresta desconhecida que é o outro. O outro sempre igual a mim. O outro sempre diferente de mim. O outro jamais menor ou maior que eu. Eu… nem existo! Existe, sim, uma multiplicidade que se configura nesse corpo aqui, impreciso, inquieto. Sempre inquieto. Quando deixamos a inquietude podemos ter a certeza da morte.

Ah, se eu pudesse gritar e isso jamais ser visto como loucura! Não importa, o grito existirá de um jeito ou de outro. E de grito em grito dizemos afinal o que somos. Tocamos enfim o único contorno real neste mundo: um instante qualquer.

Sinto o quente das palavras ao beber o meu café. É difícil falar. A gente sente. O café espuma… E, sabe? Palavra alguma dá conta disso: do aqui e do agora. Adoro este lugar no qual não fazemos absolutamente nada e por isso fazemos absolutamente tudo.

Estou! Convido palavras a estarem… E o corpo renasce…

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