É fácil entender por que pessoas brancas se tornariam supremacistas brancos: se você consegue ser um ser humano superior simplesmente por ser branco, por que não? E uma vez que a supremacia branca esteja suficientemente incorporada em uma cultura, também não é difícil entender por que algumas pessoas não-brancas se tornariam lambedoras de botas em uma tentativa equivocada de cavar seu próprio pedaço do Inferno. É, no entanto, relativamente intrigante como as pessoas em culturas nas quais a maioria das pessoas não é branca – como os muitos estados vassalos dos EUA no Leste Asiático – se tornariam supremacistas brancas.
Claro, a supremacia branca controlou as narrativas do mundo durante a maior parte do século – se não mais – graças à propaganda mascarada de entretenimento, uma tática favorecida por autoritários de todos os matizes. Quando cada filme que você viu envolve um Jihadista ou Anarquista como vilão, é fácil para as pessoas acreditarem na mentira e ignorar a realidade: os supremacistas brancos são responsáveis pela vasta maioria dos ataques terroristas nos Estados Unidos. Quando você acredita que os EUA são o modelo de liberdade, é fácil acreditar que o fascismo é de fato a democracia definitiva.
Mas para estados vassalos dos EUA como Japão e Taiwan, a erudita supremacia branca é construída sobre uma raiz muito mais profunda de racismo inerente. O estereótipo da “black face” foi de fato uma das primeiras importações culturais do Ocidente para o Japão, e mesmo agora sua cultura como um todo se recusa a renunciar a seu aliado na Segunda Guerra Mundial … ou seja, os nazistas. Taiwan, por sua vez, sempre empregou a narrativa do medo vermelho como um meio de controlar as massas, o que requer colocar os EUA como o bem último contra o mal do comunismo, justificando assim todos os crimes dos EUA.
Os supremacistas brancos, por sua vez, estão felizes em atiçar o fogo saudando esses Estados vassalos como joias brilhantes da democracia contra a escuridão do comunismo, saudando a legalização do casamento gay como uma vitória para a libertação queer … quando os chamados progressistas em Taiwan acreditava que os direitos humanos básicos dos gays deveriam estar à altura de um concurso de popularidade. E da mesma forma quando cachorrinhos são acariciados por seus donos, eles facilmente compram todas as histórias que o Ocidente lhes vende, engolindo um monte de besteiras queerfóbicas e racistas com um sorriso extasiado.
Se essa mentalidade de lamber as botas parece familiar, é porque é. É o mesmo falso dualismo imposto por tiranos em todo o mundo: Liberal e Conservador, Esquerda e Direita, Homens e Mulheres, blá blá blá. E, assim como todos os binários manufaturados, é uma besteira total. Esta é a mesma mentalidade dos tankies: já que os EUA são o mal supremo, qualquer um que luta contra os EUA é um bom “esquerdista”, mesmo que cometa genocídio. Nenhum deles dá a mínima para as coisas que afirmam se importar: nem direitos humanos ou vidas, nem liberdade ou justiça, nada, nada!
Tudo o que importa é o poder, e como os supremacistas brancos têm poder, eles estão dispostos a jogar qualquer um para debaixo de um ônibus para conseguir um pouco. Não é surpresa, então, que tantos asiático-americanos apoiaram Donald por causa do susto vermelho, e quantos negros atacaram os asiáticos desde que aderiram à narrativa do “vírus chinês”. Eles preferem ferir uns aos outros sob o comando de ditadores por qualquer outro nome do que se unir contra seus opressores. Ratos lutando por escarpas, exatamente onde os gatos brancos as querem.
“A revolução começa na mente” é mais do que apenas palavras. Hierarquias implícitas como gênero binário ou supremacia branca (que são realmente a mesma coisa) processam inocentes tanto quanto – e freqüentemente mais do que – as leis e regulamentos o fazem. Muitas pessoas marginalizadas têm reservas sobre mudanças sistêmicas porque, enquanto as hierarquias implícitas permanecerem, nenhum sistema de governo – mesmo a falta de um – irá realmente libertá-las. Temos que nos lembrar que os anarquistas não são apenas bandidos: somos contra TODA a hierarquia e coerção.
A supremacia branca é uma doença, e a única cura é a Anarquia: aniquilação total do status quo.
Este texto será dividido em quatro artigos que originará quatro vídeos compondo uma série:
Parte 1: Propaganda, Percepção e Habitus
Parte 2: Pós-Verdade e FakeNews
Parte 3: Espiral de Silêncio, Agenda Setting e Janela de Overton
Parte 4: Doxa, Episteme e Racionalidade
O objetivo central é, partindo do suposto de que somos manipulados pelas informações que nos chegam cotidianamente, analisar e explicar como essa manipulação se dá, quais suas condições de possibilidade e os mecanismos utilizados para que ela ocorra. Embora seja fruto de uma extensa pesquisa que levou vários meses, sua urgência se dá no momento em que o atual governo brasileiro de Bolsonaro resolve recriar o Ministério das Comunicações. Diante das acusações de fakenews que os aliados do governo sofrem, das mentiras e distorções cometidas pelo próprio mandatário do cargo, é de suma importância entender esses mecanismos e buscarmos, mais do que tudo, articular um pensamento que possa tornar a sociedade minimamente imune a seus efeitos devastadores.
Bolsonaro anunciando a recriação do Ministério das Comunicações
Procuraremos lançar mão de conceitos sociológicos, filosóficos, teorias de comunicação e psicologia para articular sobre o assunto, fornecendo ao final todas as referências das citações e fontes utilizadas para um maior aprofundamento do que será tratado. Não esqueçam de curtir cada texto e vídeo, se inscrever em nosso canal no Youtube e, se puder, contribuir para nosso Apoia.se para que mais textos e vídeos como esse possam ser produzidos na necessária promoção de reflexões e esclarecimentos em nossa sociedade.
Propaganda
Contrariando sua promessa de campanha de que não criaria mais ministérios, mas ao contrário, reduziria seu número (como fez com a Cultura), Bolsonaro anunciou a recriação do Ministério das Comunicações. No entanto, para além das atribuições originais criadas em 1967, que prevê a regulação dos serviços de radiodifusão, serviços postais e telecomunicações, bem como gerenciar políticas que visem a inclusão digital dos brasileiros, Bolsonaro tem como objetivo, segundo suas próprias palavras: “cuidar da comunicação do governo”. Ou seja, podemos estar diante da criação de um Ministério da Propaganda mascarado de “Comunicação”, cuja principal preocupação não será dinamizar e facilitar as estruturas comunicacionais do país, mas aumentar a eficiência da comunicação do governo como contra-narrativa para as críticas que recebe.
Joseph Goebbels — Ministro da Propaganda do 3º Reich, o governo nazista da década de 1930.
Apesar do binômio propaganda-poder ter se desenvolvido desde tempos antigos na História, foi no início do século XX — nos regimes autoritários e ditatoriais — que esse binômio se expressou de maneira mais emblemática, tornando-se fonte inesgotável de pesquisas e teorias explicativas sobre seus mecanismos, resultados e alcances. A criação da prensa móvel é considerada o fenômeno catalisador no desenvolvimento da propaganda moderna, o que proporcionou rapidez e larga escala à propagação de pensamentos políticos e ideológicos. Ao final do século XIX, com a guerra da Crimeia e a Guerra Civil americana, a propaganda se demonstrou uma forte aliada estratégica, assumindo uma posição não só de destaque, mas de suma importância para toda e qualquer pretensões de conquista e manutenção de poder.
Anúncio do D.I.P. — Departamento de Imprensa e Propaganda do governo Vargas na década de 1930.
Se em tempos mais antigos era o próprio Estado que municiava de informação a população, os avanços na impressão tipográfica na modernidade descentralizou a produção de conteúdo, o que fez com que os Estados autoritários adotassem departamentos oficiais responsáveis por tensionar as informações produzidas por órgãos independentes. Essa tensão dura até hoje, mesmo que admitamos que a imprensa corporativa tenda a defender muito mais seus próprios interesses do que exercer a fiscalização do poder público como poderia e deveria fazer.
Além de oferecer uma contra-narrativa para as críticas dos órgãos de imprensa, os departamentos oficiais de propaganda dos Estados também usavam de censura, cooptação e ataques para ter sua versão dos fatos hegemônica. Não raro, o próprio Estado financiava entre seus aliados, fora de seus quadros, órgãos de comunicação que ajudavam e contribuíam para reforçar a versão do próprio governo sobre a realidade.
Em seu livro The Watchdog Still Barks: How Accountability Reporting Evolved for the Digital Age (algo como “O cão de guarda ainda late: como os relatórios de responsabilidades evoluíram na era digital”) a experiente jornalista da CBS News e PHD pela Fordham University, Beth Knobel, afirma que nenhuma outra função da imprensa livre no mundo pode ser mais importante que o papel fiscalizador e monitorador do trabalho do governo. Afirma ainda, por ampla pesquisa publicada em seu livro, que, ao contrário do que se imagina, a era digital potencializou esse papel, apesar da aparente queda de credibilidade da imprensa devido a expansão observada de fontes alternativas de informação.
Embora o presente trabalho não afirme que as intenções de Bolsonaro seja a manipulação das informações e a anulação do trabalho da imprensa livre em fiscalizá-lo, não é difícil imaginar que suas históricas pretensões autoritárias, os ataques à imprensa, a rede de fakenews associada a seus correligionários e as investigações sobre como sua candidatura se tornou popular ao ponto de lhe dar vitória nas eleições, nos dê pistas reais do que está por vir com a recriação do Ministério das Comunicações nesse momento. Tampouco esse trabalho afirma que a imprensa livre seja isenta e mereça crédito irrestrito sobre aquilo que afirma. Nossa pretensão é discorrer sobre como nossa relação com os fatos opera e quais os mecanismos mais contundentes de manipulação podem ser acionados para mudar nossa visão de mundo e nos fazer aderir a afirmações das mais variadas sobre a realidade, sejam elas oriundas de órgãos oficiais, sejam elas oriundas de qualquer fonte pretensamente livre e isenta.
Sensação, Percepção e Experiência
Nossa relação cognitiva com a realidade não se dá de forma direta, mas mediada. Em um primeiro momento a mediação é feita pelo que chamamos de sensação, que se refere a um fenômeno psíquico básico, ou neurofisiológico, que resulta da nossa relação com estímulos físicos externos. Por exemplo, ao ouvirmos vários sons ao mesmo tempo, iremos conseguir distinguir apenas os que estão dentro do comprimento de onda que nossos ouvidos são capazes de perceber. Da mesma forma, toda ocorrência visual cuja cor emita ondas acima do violeta ou abaixo do vermelho não serão enxergadas. Portanto, todos os cheiros, cores, gostos, sons e texturas que experimentamos do mundo são dados sensoriais que, analisados, dizem muito mais a respeito da forma como sentimos fisicamente do que sobre a forma como o mundo fisicamente é.
Em um segundo momento, a realidade também se apresenta a nós para além das sensações. Uma informação sobre fatos ou a nossa própria presença em um evento podem despertar diversos afetos e significados em nós, ora determinados por diversos vieses pelos quais nossa mente opera, ora determinado por memórias, afetos e significados remotos atribuídos desde nossa socialização no mundo. Se, por um lado, as nossas sensações contam com certa estabilidade de nossos aparatos sensíveis, determinados biologicamente, as nossas percepções são singulares e variadas, já que se dão em camadas psíquicas que comportam aspectos sociais, simbólicos e culturais inescapáveis. Toda percepção está carregada de representações e juízos prévios baseados em memórias e experiências passadas revestidas de significados que, em geral, sequer estão claros para nós. Ao contrário da sensação, a percepção, portanto, é o aspecto subjetivo de nossa relação com o mundo.
A separação entre sensação e percepção, no entanto, é meramente pedagógica e se desfaz no tempo. Na medida em que o ser humano vai se desenvolvendo e adquire linguagem, praticamente toda sensação que experimenta passa a ser condicionada por suas percepções, ou seja, por toda referência cultural e simbólica internalizada em sua relação social com o meio ao longo do tempo. Isso equivale a dizer que toda possibilidade de experiência existencial humana se funda na linguagem, que se configura como base das relações mútuas que compõem a vida social.
Se nossa relação com a realidade é mediada por nossas percepções, então não somos um sujeito de conhecimento puro ou passivo, e tampouco teremos acesso a tal “realidade em si” (ou nôumeno). Assim como nos ensinou Kant, que dedicou seu pensamento filosófico à possibilidade do conhecimento humano: toda ciência só é possível na zona fenomênica, ou seja, lá onde o sujeito interage, pela experiência e através de categorias de entendimento, com o objeto do conhecimento. A fase criticista do pensamento kantiano irá promover, então, um estudo das categorias (ou como a razão consegue conhecer) dentro dos seus limites de alcance. Já no Prefácio da 2ª edição de sua grande obra, Crítica da Razão Pura, Kant estabelecia que algo que independesse de nossa experiência seria impossível ser pensado sem contradição, mas que, porém:
(…) desaparece a contradição se admitirmos que a nossa representação das coisas, tais como nos são dadas, não se regula por estas, consideradas como coisas em si, mas que são esses objetos, como fenômenos que se regulam pelo nosso modo de representação… (KANT, 2001)
É no iluminismo, portanto, que se forma a ideia de um público formado por pessoas racionais e autônomas que discutem e constroem consensos a partir de uma racionalidade comum e interesses comuns. É no iluminismo, também, que se formam as ideias de democracia e contrato social, protagonizadas por um sujeito autônomo e racional.
Isso tudo será colocado em causa depois, seja até o século XIX através de Hegel e Marx (ou mesmo pelos utilitaristas), seja através da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e outros pensadores. Constata-se que o próprio esquematismo racional de Kant irá sofrer franca influência e condicionamentos das dimensões socioculturais, de classe e/ou econômicas que, em última instância, formam e moldam a mentalidade do sujeito. Não irá mais se tratar de como um sujeito com certo aparato cognitivo autônomo (embora limitado) conhece o mundo a partir da experiência, mas, sobretudo, como essa mesma experiência, desde sempre, já condiciona o uso e configura esse aparato para que o ser humano interaja com o mundo, o conheça e se forme nele a partir de interesses, quase que invariavelmente, alheios à sua vontade.
Em seu livro intitulado “Conhecimento e Interesse”, Jürgen Habermas dedica o primeiro capítulo à Crise da Crítica do Conhecimento, oferecendo uma revisão bibliográfica e conceitual sobre o criticismo kantiano. Com isso chega a uma proposição sobre a realidade que nos ajuda a compreender porque até Kant as afirmações sobre a realidade é crítica em seus diversos aspectos:
A realidade constitui-se na moldura de uma forma vital da linguagem ordinária. Nesse sentido é real aquilo que pode ser experimentado de acordo com a interpretação de uma simbólica vigente. (…) Mas o intérprete, uma vez socializado em sua linguagem materna e motivado, em termos genéricos, para o exercício da interpretação, não opera em junção de regras transcendentais, mas ao nível dos próprios complexos transcendentais. Ele não pode decifrar o conteúdo da experiência de um texto, legado por tradição, senão em íntimo contato com a constituição transcendental de um mundo do qual ele, enquanto tal, faz parte. (HABERMAS, 1982, p. 214–215)
A palavra “Experiência”, de origem greco-latina, tem em seu mais profundo significado a marca da travessia externa ao perigo ou aos limites. Formada pelo prefixo Ex (fora), pelo radical Peri (perímetro, limite ou ‘per’, do indo-europeu como travessia, caminho) e o sufixo Entia (conhecer, aprender), o “experenciar” se constitui de uma viagem, uma travessia cheia de perigos que nos retorna vida, conhecimento. Suas acepções mais comuns dão conta tanto do sentido de teste, ensaio, experimentação, quanto de vivência, maturidade, aprendizado. Logo, trata-se de um sujeito que se ensaia, como nos diria Montaigne, grande influenciador do iluminismo posterior. Essa dimensão de travessia e de exposição ao mundo está intimamente ligada com a comunicação, pois é através da linguagem que construímos nossa percepção enquanto pré-requisito para cada passo em direção a experiências mais significativas.
Se estivermos no mundo construindo um ensaio de nós mesmos, sentindo e percebendo esse mundo através da linguagem e nos comunicando, é possível afirmar que não há experiência que não se funda na comunicação. Ou seja, toda experiência é, por si, coletiva e perfaz a construção intersubjetiva dos sujeitos falantes numa dada comunidade ao longo do tempo. A comunicação, então, cumpre um duplo papel: dota de sentido a experiência e permite expressá-la simbolicamente entre os participantes dela. Ou seja, é o processo comunicacional que funda, coletivamente, a experiência e nos faz humanos.
Pierre Bourdieu, sociólogo francês do século XX, que desenvolveu o conceito de Habitus.
Habitus
É ao conceito de Habitus, desenvolvido por Pierre Bourdieu, sociólogo francês do século XX, que iremos recorrer para compreender de que forma as estruturas sociais não apenas condicionam como em grande parte determinam campos de fala, compreensão e as experiências dos sujeitos. Bourdieu define Habitus da seguinte forma:
[…] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações — e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas […] (BOURDIEU, apud in (SETTON, 2002, p. 62)
Ou seja, se a percepção é o princípio mediador entre sujeito e a realidade, o Habitus é o princípio mediador entre o sujeito e sua percepção: princípio de correspondência irresistível entre as práticas do indivíduo e as condições sociais de sua existência, envolvendo, obviamente, as relações intersubjetivas comunicacionais. Mais do que isso, Habitus é uma subjetividade socializada que se estrutura socialmente nas e pelas práticas dos indivíduos em contato mútuo e, ao mesmo tempo, é estruturante do indivíduo que dela participa a partir de certo modo de vida coletiva.
Sendo o conceito de Habitus de Bourdieu muito próximo à ideia de complexos transcendentais de Habermas, é no habitus que se forma a chamada opinião pública que permitirá que as visões de mundo e as práticas dos indivíduos (inclusive o que ele pensa e como pensa) sejam manipuladas para fins que o próprio indivíduo desconhece.
Se o século XX foi marcado pela Indústria Cultural e a influência irresistível da Comunicação de Massas ao penetrar nos Habitus contemporâneos, construindo formas de ser dentro de um sistema que impõe um determinado tipo de existência, seja através da televisão, indústria cinematográfica, literatura ou imprensa, por outro lado, o advento da internet revolucionou o campo da comunicação ao permitir a criação de Habitus variados de narrativas contra-hegemônicas, onde a Teoria da Espiral de Silêncio poderia ter sido colocada em questão, porém a reforça.
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Chegamos ao fim do primeiro texto/vídeo da série “Como Você é Manipulado”. Gostaríamos de pedir para que você curta e assine nosso Canal no Youtube e, se quiser e puder, nos ajude no financiamento desse trabalho que realizamos através de nosso Apoia.se (clique no link). Em breve publicaremos os outros textos/vídeos da série.
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Parte 1 da série “Como Você é Manipulado?” do Canal Gambiarra MiniDoc: estreia dia 30/06/2020 às 19:30h.
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Referências
AROUCA, F. B. Primeira Guerra Mundial: Propaganda, Imprensa e Cultura Visual. Boletim Historiar — Dossiê Violência no Sec. XX: entre traumas, memória e história, n. 17, p. 49–62, 30 dez. 2016. ISSN ISSN 2357–9145. https://seer.ufs.br/index.php/historiar/article/view/5956.
GJ, B. Percepção e Realidade. PsiqWeb, 2005. Disponivel em: <http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=206>. Acesso em: 14 jun. 2020.
HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Tradução de José N. Heck. Rio de Janeiro: Zahar, 1982
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 5ª. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
PIMENTA, S. B. B.; CALDAS, R. S. Estudo introdutório sobre desenvolvimento da percepção infantil em Vigotski. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, São João del-Rei — MG, n. 7, p. 179–187, jul-dez 2014.
SETTON, M. D. G. J. Uma teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 20, p. 60–70, 2002. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000200005 acesso em 13/06/2020.
Porque, simplesmente odeio, rejeito, desprezo e luto contra todo tipo de poder. O poder é a relação (ou mesmo o ato) que interdita a afirmação da potência do outro. Todo poder se exerce na despotencialização, na coação e no controle dos corpos. Todo poder se dá no franco desvio nos caminhos da potência, pois ele quer se apropriar do outro, quer seu domínio e submissão.
Não existe exercício de poder que não interdite a capacidade do outro em agir por si mesmo. Por isso ele sempre é um ato de violência, e nem sempre apenas simbólica. É violento porque ele se dá e se alimenta da despotência, mesmo no caso em que seu exercício seja consensual. O aparente conforto gerado pela irresponsabilidade em ser dominado e expropriado da capacidade de agir, tem o alto custo de se ter roubada a potência para quem o exerce. Destarte, o poder revela a impotência de quem o deseja e seu ódio pela potência do outro.
Como disse Deleuze, todo poder é triste. Ele expropria a potência do outro porque é, em si, pura impotência. Quanto mais fraco e degenerado é, mais deseja se realizar na diminuição e submissão do outro, do qual se torna dependente como um parasita. Há na necessidade de domínio uma pré-consciência da impotência e o terror em ser dominado.
Elemento de formação propositiva, de origem grega, “arquia” exprime a ideia de poder. Ao prefixar-se com “a”, significa a negação do poder: ANARQUIA. Negamos o poder em todos esses aspectos em favor da potência mútua. Contrária ao poder (que é impotente), a potência é fluxo que se basta a si própria. Em relação, não rebaixa o outro, mais o potencializa porque quer crescer e superar-se. Potência é liberdade. Como não precisa diminuir ninguém para dominar, ela amplia a liberdade de todos. Enquanto o poder cerceia, a potencia transborda.
Enquanto o desejo que nasce do poder tem por critério o domínio, o desejo de potência tem a si próprio como critério e se amplia para além de si. O medo da liberdade e da potência é que faz nascer a necessidade de poder. Mas é o impotente quem mata, usurpa, abusa, expropria em nome do poder, enquanto a potência doa, multiplica, afirma a vida e a ampara. O poder é mesquinho. A potência generosa. O poder que se exerce quer controlar, cercear, podar, diminuir. A potência que se exerce quer presença, acontecimento, experiências e experimentações.
O circuito de afetos que orbita o poder é triste, melancólico, maníaco, mesquinho e violento. Os afetos envolvidos na potência são intensos, felizes, generosos e criativos. Poder é contenção. Potência é transbordamento. O poder requer função, tarefas e horários. Potência requer liberdade, criação e realização.
Good Citizen (Cidadão de Bem) era o nome do Jornal da Ku Klux Klan, organização racista e fascista dos EUA.
A grande pergunta que se impõe acerca do que leva uma pessoa a ter a intenção de voto em Bolsonaro não tem a ver com grau de instrução, gênero, idade, etnia, mas sim sobre quais estruturas e visões de mundo essa pessoa desenvolveu até se auto-intitular “Cidadão de Bem” e acreditar que votando em Bolsonaro ela estaria sendo vingada ou justiçada diante do mundo. Há duas espécies de eleitores do capitão reformado que se confundem dentro da estrutura social que formou o Brasil contemporâneo. Uma é aquela cujos membros veem Bolsonaro uma potencial alternativa para seu ódio contra o PT e tudo o que representa a esquerda. Outra, reúne aqueles que, mais do que uma potencial alternativa, enxerga Bolsonaro como representante legítimo de seus anseios, se identifica com ele, e o toma, realmente, como um mito, ao ponto de reverenciá-lo pelo que ele tem de pior, ao passo que ignoram totalmente sua incapacidade de articular um raciocínio razoável ou ter alguma proposta concreta para tirar o país da grave crise em que se encontra. Nenhuma delas, até onde alcanço, parece estar preocupada nem pelo que representa seu “Posto Ipiranga”, Paulo Guedes, nem pelo que representa seu vice, o ex-General Mourão.
Guedes, ultraliberal, acredita na fantasia de que as forças espontâneas do mercado, com cada agente atuando por interesse próprio, faria o Brasil sair do buraco e andar com as próprias pernas, ao contrário do que todo país do mundo que se desenvolveu fez durante a História da Humanidade. Seu vice, ex-general, não se furta de declarações misóginas e racistas com a maior naturalidade do mundo, afirmando que mães e avós que criam crianças são fornecedoras de desajustados sociais e integrantes futuros do tráfico, afirmando que a indolência e preguiça brasileiras vem de nossa miscigenação com negros e indígenas, mas esquecendo de mencionar o abandono parental masculino e tampouco o homem branco europeu que submeteu outras etnias para seu uso pessoal na formação de nossa sociedade, claramente dividida e desigual estruturalmente. Mas nada disso está em desacordo com o próprio pensamento de Bolsonaro, em que pese seu passado estatista e militarista que nega a ditadura e faz homenagens a torturadores confessos. Mesmo que oriente seus colaboradores a se calarem nessa reta final da eleição, o desprezo pelos direitos trabalhistas demonstrado por Mourão já foi reforçado às expensas por declarações do Bolsonaro. O entreguismo e as privatizações indiscriminadas propagadas por Paulo Guedes já foram reforçados pelo candidato que chegou até a dizer que a Amazônia não era nossa e prestar continência para a bandeira dos EUA.
Mesmo Bolsonaro sendo um embuste, um integrante do baixo clero no Congresso, com participação inexpressiva no legislativo, sua vociferação, palavras de ordem e agressividade o notabilizaram, catapultado pela venda de que ele seria honesto, embora empregue com verba da Câmara funcionários para cuidar de seus cachorros (a Val), pratique nepotismo, receba auxílio moradia (mesmo tendo casa onde trabalha) e não abra mão dos privilégios que diz querer combater. Emblemática, para ajudar a construir sua imagem falsa de honesto, foi a “lavagem” de recursos que fez quando recebeu um cheque da JBS em sua conta e, ao invés de devolve-lo ao emitente, entregou para o partido que, no mesmo dia, depositou a mesma quantia em sua conta bancária. Nada disso seria motivo de escárnio se não fosse a gritante falta de propostas concretas e factíveis até para a área em que se diz um especialista: a segurança. Além de não ter aprovado nenhum projeto de segurança em seu próprio Estado de origem (Rio de Janeiro, que é um dos mais violentos do país), suas pseudo-propostas são apresentadas por frases de efeito e envolvem armar a população, metralhar favelas após o aviso para que os bandidos se retirem e/ou castrar quimicamente estupradores. Todas as propostas tem como alvo o efeito, um resultado não desejado. Nenhuma busca diagnosticar as causas, minimizá-las ou inibi-las: todas são ditas surfando na onda de indignação de gente manipulável e fragilizada diante da situação de crise em que vivemos. Um manipulador com o carisma de catalizar a indignação coletiva, mas com um total vácuo de efetividade e nenhum traço racional.
Os Cidadãos de Bem
Mas tentemos entender mais a fundo as pessoas que votam nesse “Cidadão de Bem” chamado Jair Messias Bolsonaro. Dois fatos ilustrativos e tenebrosos talvez possam nos dar um norte nesse breve ensaio. Um deles se refere a dois candidatos do PSL (partido de Bolsonaro) ostentando uma placa de rua com o nome de Marielle Franco quebrada.
Candidatos do PSL, Daniel Silveira (candidato a Deputado Federal) e Rodrigo Amorim (candidato a Deputado Estadual), aparecem sorridentes com placa de Marielle Franco quebrada
O candidato ao Senado pelo PSL, filho de Bolsonaro, Flávio, saiu em defesa dos protagonistas desse fato alegando se tratar de um restabelecimento da ordem pública, já que a placa teria sido colocada em cima da placa oficial da Praça Floriano, na Cinelândia, Rio de Janeiro. A campanha de ambos inclui, entre outras coisas, a missão de “combater com força o PSOL e suas pautas repugnantes”, tendo ambos mostrado ao que vieram, não só pela retirada da placa em si — seja lá pelos motivos que alegam — mas pela forma ostensiva como quebraram e mostraram em seus perfis do Facebook.
Como disse um dos maiores especialistas em segurança pública no país, o antropólogo Luiz Eduardo Soares em áudio compartilhado no Whatsapp:
…os dois homens se vangloriam como quem levanta um troféu. Em fazendo [isso] transmitem uma mensagem mais profunda do que, provavelmente, supõem: ao quebrar a placa, que celebra a memória da vítima do mais horrendo dos crimes, o mais vil, o mais bárbaro, os dois saúdam a morte. A morte no sentido grego clássico. A morte como condenação ao esquecimento eterno. Por isso, em sua coreografia patética, capturada pela foto, assassinam Marielle pela segunda vez. Evocam sua memória para negá-la. (…) Isso se chama profanação e promove a segunda morte de Marielle. (Luiz Eduardo Soares)
Outro fato, também citado no áudio, refere-se ao episódio ocorrido em São Paulo, quando torcedores do Palmeiras citaram Bolsonaro em palavras de ordem contra homossexuais: “Ô bicharada, toma cuidado, o Bolsonaro vai matar veado!” — O vídeo, viralizado nas redes sociais, foi gravado na estação de metrô da Praça da Sé e foi compartilhado mais de 10 mil vezes com mais de 4 mil comentários (até a escrita desse texto).
Esses, nem de longe, caracterizam-se como fatos isolados. Demonstram mais do que uma adesão indignada contra algo, mas uma adesão por afinidade a algo que sempre existiu e que fora, possivelmente, reprimido por algum tempo na dinâmica da sociedade brasileira. Fazem coro com frases do tipo “…esse aqui é para metralhar petralhas” que seu ídolo proferiu em um de seus comícios. A cultura da morte, do ódio, da eliminação daqueles que lhes são estranhos, desviantes ou meramente diferentes é uma tônica reacionária clássica, movida, sobretudo, pelo medo, pelo terrorismo psicológico que, diuturnamente, essas pessoas assistem e reproduzem através da igreja, mídia e, mais do que nunca, através de políticos demagogos em busca de poder.
Em meu trabalho de TCC na graduação em Filosofia, meu artigo se chamava Prolegômenos para uma Fenomenologia da Desrazão, um pretensioso ensaio para tentar entender o avanço da direita trazida pelos Think Tanks estadunidenses e sua junção, aqui no Brasil, com o mais retrógrado conservadorismo com o ideário ultraliberal. Nele, tateio algumas razões pelas quais emerge esse Homem Normal (ou normatizado) que se auto-intitula Cidadão de Bem. Faço também uma análise histórica da construção da subjetividade humana a partir do Iluminismo e caracterizo como a razão se deu como desrazão quando irrompe a modernidade, o liberalismo econômico, a razão instrumental, a burocracia do industrialismo e a alienação.
Toda a estrutura que molda e nos socializa através do que Habermas veio a chamar de “Colonização do Mundo da Vida”, serve como estofo para a emergência desse “Homem Normal”. À época, o caracterizei da seguinte forma:
Os críticos da modernidade em geral definem o ser humano atual a partir da emergência histórica de um ser desorientado, sem fé (o que não significa sem religião), mas desorientado existencialmente para sua autoconstrução. Na emergência desse ser, dificilmente na alternativa dada por Habermas em seu conceito de Razão Comunicativa haveria alternativas racionais para sairmos da situação civilizatória em que estamos. A questão é que os críticos da modernidade, os quais Habermas dirige seu contraponto, postulam uma desorientação quando, na verdade, há uma orientação sistemática e dirigida, institucional e pedagógica para uma existência enfurnada na e para a legitimação metafísica de um sistema que nunca foi de produção, mas de acumulação privada da produção social.
(…)
Realidades objetivas, formas de pensar, agir e falar são faces de um mesmo corpo social indissociável cujas mudanças possíveis jamais serão isoladas. Mais do que uma relação dialética entre eles há uma relação complexa de retroalimentação constante, mas cuja emergência de novas características é aleatória, imprevisível e indeterminada. Uma sociedade que, ao invés de desorientada pelo sistema (como acreditam), na verdade é orientada e coercitivamente determinada para servi-lo em todos os seus aspectos, sofre de uma rigidez quase intransponível (e vemos seu recrudescimento a cada década), mesmo ela própria estando em crise. Afinal, a própria crise já se incorporou no modus operandis do sistema e não altera substancialmente o “homem normal”, conservador e eventualmente reacionário.
Esse Homem Normal não tem nada de desorientado como querem entende-lo. Ele é sistematicamente orientado desde seu nascimento ao receber um ‘kit’ básico de verdades, valores e tendo seu comportamento legitimado por seu tempo e pela coletividade a que pertence. Os axiomas que regulam sua existência, seus juízos morais, sua noção de bem e de mal são reforçadas pelo sentimento de pertencimento e pela discriminação compulsória de todo aquele que não se encaixa nesses axiomas; tidos como anormais. Seus problemas existenciais estão reduzidos às dimensões práticas que reforcem ou não seu modo de vida, cujo norte é o favorecimento ou não do grande sistema metafísico a que pertence e que ele tem como único refúgio para sua autoconservação e possibilidade de sucesso. Sua crença acrítica na chamada ‘meritocracia’ e a atribuição ideológica de que todo aquele que critica seu modo de vida é incompetente ou preguiçoso, lhe dão a segurança necessária para legitimar cada vez mais seu preconceito e seu comportamento discriminatório com todos os tipos de minorias. Não é possível afirmar uma razão comunicativa, pois há uma rejeição sumária ou desconhecimento de qualquer outro campo linguístico ou semântico que não seja reforço daquilo que redunda na sua autoconservação. O Homem Normal é um homem colonizado e totalmente subsumido pelo sistema, totalmente alienado de si e do outro que não seja seu espelho. Diante da angústia ou da incerteza, do tédio e do vazio, da rejeição ou desemprego, enfim, na iminência de constatar sua inutilidade ao sistema, recorre aos vícios, se droga, se fanatiza na religião ou se radicaliza em causas contra tudo o que acredita que fez mudar seu modo de vida, jamais culpando ao sistema ou a si mesmo. Esse Homem Normal jamais luta para mudanças, luta para conservar o que tem ou reagir ao que pensa ter perdido: tudo o que pensa ser seu por direito e/ou mérito. Ele se pauta pela falta, pela conservação e, por isso reage e nunca se expande, nunca transborda, apenas explode. Esse homem, embora possa estar proletarizado, oscila entre a apatia, autodestruição ou, não raro, desenvolvendo elementos característicos do fascismo; tendo matado em si qualquer resquício revolucionário autêntico obliterado por sua racionalidade subjetiva e instrumental: a Desrazão Moderna.
Ainda não vejo outra forma de entender e caracterizar a existência de simpatizantes do Bolsonaro. O problema é que eles agora, depois de um breve período em que se envergonhavam dessa tosquice, explode sem controle algum em franca possibilidade de confrontos e repressões. A eleição deste homem como presidente de uma nação faz arrepiar todo aquele que conseguiu ao longo dos anos colocar minimamente parte da cabeça para fora do telhado que cela nossa imersão e socialização dentro desse grande sistema. Não há, como podemos ser levados a pensar, nada em comum entre uma figura como Bolsonaro e seus correligionários e eleitores, a não ser o sonho de se dar bem como ele enganando tanta gente. O eleitor do Bolsonaro, antes de tudo, parece ser um frustrado, um invejoso de seu líder, espelhando suas atitudes e formas de pensar porque reforçam sua necessidade de auto-conservação insana. Ao menos aqueles que acreditam se identificar com ele, mas que são sinceros, hão de perceber que ele é uma farsa, um hipócrita abjeto que está usando a indignação (justa ou não) da população para continuar se dando bem. Seu choro, sua raiva constante ou mesmo o “coitadismo” que demonstrou diante das câmeras após o atentado que sofreu é uma grande peça de teatro para cegar ainda mais a massa de manobra que pode levá-lo a ser presidente do país.
Como o extremismo se comunica para tornar o fascismo normal…
Se o chamado “Desafio do leite” proposto pelos produtores de laticínios aqui no Brasil não tiver ligação com o que exporemos nesse vídeo, não podemos afirmar com toda certeza que o gesto de Allan dos Santos, blogueiro bolsonarista e investigado na CPI das FakeNews, seja algo inocente, pois brinca com uma ambiguidade perigosa fazendo exatamente como os trolls da extrema-direita mundial fazem. O fato é que desde, pelo menos 2017, há uma apropriação pela extrema-direita (ou direita alternativa, a alt-right americana) composta por supremacistas brancos, neonazistas, fascistas e fundamentalistas cristãos, ao ato de beber leite como símbolo de uma suposta superioridade racial.
Tudo isso se tornou visível e risível em 10 de Fevereiro de 2017, quando uma exposição permanente Anti-Trump, montada no lado de fora do Museu da Imagem em Movimento de Nova York chamada He Will Not Divid Us (“Ele não nos dividirá”) organizada pelo ator Shia LaBeouf, foi invadida por um grupo neonazista ostentando tatuagens e iconografia do Terceiro Reich. O grupo dançava com os dorsos nus, bebendo leite e o deixando escorrer por seus pescoços e peitos. Antes dessa visibilidade, porém, meses atrás, o 4chan (um fórum conhecido pelo anonimato que confere a seus usuários e por ser um reduto do extremismo e de fakenews na internet) exibia desde julho deste ano diversos posts anônimos relacionando supremacia branca ao consumo de leite. Os posts tinham por base uma distorção de um estudo publicado na Nature que mapeava as regiões do mundo em que ocorrera a mutação que permitiu que parte da espécie humana continuasse a produzir a enzima da lactase depois do desmame.
Como parece ser recorrente na ideologia de extrema-direita, para que algo a favoreça sempre se recorre a mentiras, distorções ou falcatruas: convenientemente não é mencionado no post do 4chan que existem outros bolsões de persistência de lactase, como na África Ocidental, na África Subsaariana, na África do Sul, no Oriente Médio e no Sul da Ásia, inclusive mais antigos do que o ocorrido na Europa. Pastores de gado da África subsaariana e do Sul possuem essa mesma enzima em seus DNAs, possuindo toda uma cultura voltada à criação de gado leiteiro, inclusive possuindo 400 palavras diferentes para se referir ao gado.
Assim como acontece no Brasil, que depois de uma frase dita logo se diz tratar-se de exagero ou brincadeira, logo tentaram justificar o ato como trollagem a um liberal branco tentando ser politicamente correto: Shia LaBeouf. No entanto, o post racista teve alta repercussão e supremacistas famosos como o líder da Alt-Right Richard Spencer e o ativista Baked Alaska adicionaram emojis de copos de leite em seus perfis no Twitter, orgulhosos de conterem essa enzima, mesmo que tenha sido causada aleatoriamente por uma mutação, mas que, para eles, passou a ser um símbolo da supremacia e orgulho branco, chegando a originar frases xenófobas do tipo: “você não pode beber leite, então volte”. As Hashtags #MilkTwitter e #Soyboy subiram e viralizaram rapidamente para comemorar as normas tradicionais de gênero dominadas pelo patriarcado branco, ridicularizando a “agenda vegana” (atribuída a uma conspiração judaica comunista), a diversidade e o feminismo. Em 2018, o Animal Studies Journal publicou artigo da pesquisadora Vasile Stanescu intitulado O Poder Branco do Leite: Leite, Direita Racista e a Alt-Right. Nele a autora explica porque o leite foi escolhido como um símbolo de pureza racial pela Direita Alternativa:
“(…) este artigo argumenta que o uso atual da alt-right sobre o leite, tolerância à lactose, raça e masculinidade pode ser conectado a argumentos semelhantes originalmente feitos durante o século XIX contra populações colonizadas e grupos de imigração. No século 19, as populações colonizadoras classificaram as populações colonizadas como “Comedores efeminados de milho e arroz” devido à suposta falta de consumo de carne e laticínios.”
É importante conhecermos a alt-right de Spancer e entender sua ligação com a extrema-direita que assola o Brasil a partir do entorno e do próprio Jair Bolsonaro e seus filhos. A ligação entre os bolsonaros e Steve Bannon, ex-coordenador de campanha de Trump é conhecida, mas mais do que isso, há uma agenda comum entre a colcha de retalhos ideológica da direita alternativa e os bolsonaros que vai desde a escolha de bodes expiatórios para uma conspiração globalista comunista contra a civilização cristã ocidental, passa pelo negacionismo científico anti-vacina, pelo anti-multiculturalismo, pela xenofobia ou racismo explícito e vai até a própria pandemia do novo corona vírus como farsa e parte dessa conspiração.
A criação dessa direita alternativa foi uma reação ao partido Republicano dos EUA, acusado por eles de, embora conservadores, serem perigosamente tolerantes com agendas afirmativas e progressistas, envolvendo cotas e direitos civis. Viram-se representados, porém, em Donald Trump contra esse “conservadorismo tradicional” que teria se rendido ao establishment. Com isso a direita alternativa também abriu espaço para experimentações de novas ideias da direita, abraçando tanto o pensamento libertarianista, anarcocapitalista, quanto um retorno ao catolicismo romano antes do Concílio Vaticano II, sem esquecer os grupos extremistas e supremacistas como a Ku Klux Klan, neonazistas e fascistas em geral, que tradicionalmente não participavam da política institucional. Ou seja, ideias que podem ser consideradas opostas dentro de um mesmo guarda-chuva prático de virulento ativismo.
Aqui no Brasil, seja sob influência direta ou por identificação, sob a batuta de Olavo de Carvalho, não foi à toa que grupos fascistas e neonazistas apoiaram a eleição de Bolsonaro à presidência. Não à toa vemos em Brasilia a formação de uma milícia de características inequivocamente fascista encabeçada por Sara Winter chamada 300. Faz parte da história política e pessoal de Jair declarações de cunho racista, homofóbico e preconceituoso, como podemos ver em toda a internet.
De uma coisa não podemos nos enganar, como nos diz Rodrigo Nunes, professor de Filosofia Contemporânea da PUC-RJ; Bolsonaro se utiliza da tática dos trollls para se comunicar. Em uma entrevista à BBC News Brasil ele afirma:
“Você tem um grupo de pessoas que a gente poderia descrever como sendo o núcleo ideológico do bolsonarismo, os formuladores da tentativa de dar uma identidade própria ao que seria o bolsonarismo, que a partir de um determinado momento começam a adotar um linguajar, uma série de pontos discursivos e de traços que são claramente tomados da alt-right americana.”
Nunes é contrário à ideia de “Cortina de Fumaça” defendida por alguns. Para ele é nessas declarações, mesmo ambíguas, que se mantém coeso o núcleo duro do bolsonarismo. Ao se eleger o bode expiatório culpado de todos os males, se institui um jogo que inclui falas que escandaliza a oposição, dando a entender que seja para isso, mera trollagem, mas no fundo representa exatamente o que ele pensa acerca de temas que não pegaria bem dizer com todas as letras. É possível que a cortina de fumaça seja invertida, ou seja, em momentos em que se discute algo importante, lança-se mão de alguma polêmica onde se pode relativizar ou voltar atrás criando as famosas Janelas de Overton para se naturalizar questões ideológicas que precisam se hegemonizar no futuro.
A Janela de Overton foi criada por Joseph P. Overton, à época vice-presidente sênior do Centro Mackinac de Políticas Publicas de Michigan, EUA, um Think Tank liberal. A Janela de Overton é um modelo para se entender como as ideias de uma sociedade mudam ao longo do tempo e passam a influenciar políticas públicas. Os políticos no sistema representativo limitam-se a apresentar projetos que traduzem a média da mentalidade da população ou do nicho que eles representam. Essa média da mentalidade é representada pelos discursos e temas que estão sendo proferidos no momento e são consideradas em uma janela, ou seja, visíveis. Outras ideias, mesmo consideradas importantes, mas que não estão na janela, nunca são propostas ou colocadas em discussão pública diretamente, pois as chances de serem rejeitadas são grandes.
A missão dos Think Tanks, formadores de opinião, youtubers e as chamadas mídias alternativas, é deslocar a Janela de Overton para esses temas e coloca-los em discussão para formação de consensos coletivos ou para que leis sejam propostas com base nessas ideias. Sim, trata-se exatamente de manipular a opinião pública a favor de seus interesses. E é isso que o núcleo bolsonarista faz ao pautar temas polêmicos, trollagens e relativização dos absurdos proferidos por Bolsonaro e seu clã, seja através de seus milhares de bots nas redes sociais, grupos de Whatsapp ou, diretamente, de seus integrantes.
Não há como isentar o ato de Bolsonaro e de seu correligionário Allan dos Santos. Eles não estão alheios ao que acontece na alt-right mundial e comungam de toda agenda ideológica dessas organizações. Não podemos esquecer o pronunciamento de Roberto Alvim como secretário da cultura usando tanto a retórica quanto a estética nazista e, mais recentemente, o fiasco na tentativa de formar uma milícia aos moldes fascistas feita pela Sara Winter com seus 300 de Brasiília.
Podemos estar diante de um exemplo emblemático do Paradoxo de Poe, um fenômeno derivado de outro fenômeno chamado Lei de Poe. Basicamente a Lei de Poe refere-se a debates da internet sobre religião ou política. Ela afirma ser impossível ser irônico, criar uma paródia ou fazer uma gozação sobre um fundamentalista ou extremista sem que haja algum sinal ou emoji denunciando que se trata de uma ironia ou paródia, pois sempre haverá alguém que irá considerar como real. O Paradoxo de Poe, por sua vez, nos revela que em qualquer grupo extremista, é totalmente possível que um membro se expresse de tal forma que aquilo que ele diz seja confundido com uma ironia, paródia ou gozação, podendo ser punido ou mesmo expulso do grupo. Conclusão, nem os próprios extremistas sabem seus limites.
Por fim, não nos parece nada impensável que o Desafio do Leite aceito por Bolsonaro e seus correligionários sirva também para construir e consolidar a janela racista de apoio à política de repressão que vimos assistindo, evidenciada pelos discursos e atitudes eugenistas e racistas, da sua estreita ligação com a Alt-Right estadunidense e a estratégia troll de abrir janelas de Overton para temas autoritários e reacionários. O fato é que estamos diante de algo a ser combatido em sua mais profunda raiz. Não é mais possível cruzarmos os braços quando vidas estão sendo eliminadas não apenas pela negligência de uma gestão incompetente, mas por uma política real, efetiva: uma necropolítica encabeçada por Bolsonaro aqui no Brasil, mas que forma uma rede internacional articulada por figuras como Steve Bennon e com a ascensão de extremistas de direita, fascistas e neonazistas ao poder em diversos países. Combatê-los é uma questão humanitária, pois nenhum deles tem uma visão de Estado que busca minimizar os efeitos de um capitalismo predatório e concentrador de riqueza, ao contrário, apesar da retórica nacionalista, todos esses líderes trabalham incessantemente para marginalizar, excluir e subalternalizar os trabalhadores para extração exponencial da riqueza gerada pelo trabalho.
A luta antifascista é, mais do que nunca, a luta de todos nós…
Stănescu, Vasile, ‘White Power Milk’: Milk, Dietary Racism, and the ‘Alt-Right’, Animal Studies Journal, 7(2), 2018, 103–128. Available at: https://ro.uow.edu.au/asj/vol7/iss2/7
Seguindo seu plano malévolo, depois de ter dito que quer a “garotada longe da política”, Bolsonaro dá mais um passo rumo ao anti-intelectualismo que marca sua trajetória desde sempre. Desta feita, incorporando de vez o Efeito Dunnung-Kruger, o presidente cria uma mentira para basear a decisão de diminuir os investimentos nos cursos de Humanidades no ensino brasileiro. Conforme nos mostrou o relatório “Pesquisa Brasil”, feito pela empresa Clarivate Analytics para o CAPES, das 20 universidades brasileiras que mais produziram pesquisa, 15 são federais e 5 são estaduais. Todas públicas. Nenhuma particular, ao contrário do que afirmou o presidente em entrevista para seu cabo eleitoral Augusto Nunes da Jovem Pan.
As palavras são difíceis de tocar. São transparentes, turvas, feitas de camadas. Tentamos, mas o corpo é quem realmente sabe de forma mais profunda o que a palavra apenas esbarra. Eu tenho um segredo: o meu nome não fala sobre mim. Mas temos dificuldade em aceitarmos essa reflexão. Afinal, o que faríamos com a nossa crença histórica e irresistível de que a palavra seja divina ou verdadeira, completa e fechada em si mesma? É desconsiderando o corpo que abandonamos o caminho da escuta, a porta de entrada e saída da incerteza e pisamos um chão cujas pedras cimentadas são feitas de verdades inquestionáveis. As palavras deixam de sentir e passam a engessar na tentativa de dar conta do que gostaríamos de ouvir. Mas, de novo, o corpo é quem sabe de um mundo sem previsões e a palavra é uma experiência sempre limitada dele mesmo.
Se falar é uma forma limitada de experimentar o mundo, palavra alguma tem atributo universal. Ela tem recorte e é dinâmica. A nossa carne reverberaria o mutável e o incompleto, mas com palavras de gesso ela ganha uma roupa, um modo específico de vibrar, se fixa e o que reverbera já está morto. Por que faríamos esse salto imbecil e acreditaríamos nele? Parece que não sabemos viver o corpo que fala, mas somos ótimos na fala que cala. Compulsoriamente ignoramos o corpo para que sejamos uma palavra que sequer existe. Não é a palavra livre, que experimenta, mas uma palavra obcecada pela fixidez em nome de uma paz resignada.
Oi! Tudo bem? Meu nome é… Eu não sei, mas sinto! Eu venho de… Talvez de longe, talez de perto. A novidade é que ainda respiro. Sinto tudo ao mesmo tempo. O calor do sol, o vento gelado, a triste lembrança de uma história de amor e o gosto de saliva em minha boca de outro corpo nesta manhã. Tudo está aqui, agora, pois nada quer ser apagado. Lembrei! Meu nome é Cansaço. Tenho andado me arrastando, porque digo, tento e faço e não há quem note. O mundo não me cabe! Sabe esse tom rubro desta noite que pulsa? Não sabe, né? Claro que não, só eu eu sei. E não sei de uma saber maior. Não sei de um saber completo. Não me sinto melhor que ninguém, só sinto. Vivo. Meu nome como dizia é Força… não, Resiliência… melhor, Luta… Ah, sei lá! Não caibo de novo em palavra alguma. Que bom! É tão bom não caber! Se soubéssemos… se não tivéssemos medo disso simplesmente não caberíamos e seríamos livres. Mas inventamos nossas liberdades ilusórias e nelas fincamos o nosso acordar e adormecer: a repetição de uma rotina morna ao extremo.
Quando temos a possibilidade de um diálogo rico com o outro escolhemos péssimos monólogos e sentenciamos: “Esta é a minha verdade! Você tem a sua e eu tenho a minha!”. E ficamos satisfeitos com as nossas velhas crenças sendo reafirmadas sem espaço algum para o movimento do pensamento, suas mudanças e superações. Agimos assim como se ter uma verdade fosse algum mérito. Essa postura aliás está muito presente em nosso tempo. Diariamente é o que temos tido que engolir: seres arrogantes e ignorantes pensando que são donos de alguma verdade e achando que assim são melhores. Patético!
Assumir a nossa ignorância natural parece algo horrível para as imagens externas sobre nós que teimamos em sustentar. Então inventamos que temos voz e que ela nos basta, que as palavras dizem tudo. Silenciamos o diferente com palavras de gesso. A gente adentra um terreno pouco fértil vomitando certezas a todo momento. A terra não tem o que germinar. Está tudo pronto, dito, assinado. Não somos afeitos ao diálogo e ao risco de vermos a nossa natural incompletude. Enquanto isso o corpo se debate e é ignorado. Sério! Como suportamos tamanha falta de ar?
No fundo sou este corpo que pulsa mesmo sem sentido algum pra isso. E digo, digo, digo…
É por tudo isso que precisamos nos apropriar da palavra resgatando a experimentação que ela é. Precisamos falar de outra forma. Haja jogo de cintura para a ressignificação de um corpo silenciado e de uma palavra que desaprendeu a dançar. Precisamos reinventar não apenas a palavra em si, mas trazê-la de volta ao lugar da qual nunca deveria ter saído: o corpo. Nessa tentativa é que, de repente, o corpo grita, chora ou fala palavras inexistentes. A loucura seria o primeiro passo para a sanidade.
Espere!…
Voltei! Só fui deixar o lixo lá fora com os escombros de deus e dos anjos. É por isso que estamos gritando feito animais raivosos, descontrolados, puro instinto de destruição e covardia. Porque nossas palavras já não suportam nada. Viraram vento e pó. Insistimos em segurar farelos nas mãos como se fossem rochas inteiras. Cegos. Burros. Viramos ignorantes completos e elegemos qualquer um para ser o nosso líder. Desespro puro! Despreparo completo para o que de fato significa viver. Não nos temos. Adormecidos, entorpecidos, matamos sem ver e morremos sem sentir.
Palavras são forças, são ressonâncias, estados que emitem sons. Não temos que entender, mas acolher. Sair da nossa zona de conforto pra habitar a floresta desconhecida que é o outro. O outro sempre igual a mim. O outro sempre diferente de mim. O outro jamais menor ou maior que eu. Eu… nem existo! Existe, sim, uma multiplicidade que se configura nesse corpo aqui, impreciso, inquieto. Sempre inquieto. Quando deixamos a inquietude podemos ter a certeza da morte.
Ah, se eu pudesse gritar e isso jamais ser visto como loucura! Não importa, o grito existirá de um jeito ou de outro. E de grito em grito dizemos afinal o que somos. Tocamos enfim o único contorno real neste mundo: um instante qualquer.
Sinto o quente das palavras ao beber o meu café. É difícil falar. A gente sente. O café espuma… E, sabe? Palavra alguma dá conta disso: do aqui e do agora. Adoro este lugar no qual não fazemos absolutamente nada e por isso fazemos absolutamente tudo.
Estou! Convido palavras a estarem… E o corpo renasce…
Muitos pensadores ao longo da história se debruçaram sobre a questão do conhecimento. Mas esse texto não é, exatamente, sobre epistemologia, embora a tangencie. A questão que queremos colocar aqui é: até que ponto (e sob quais consequências), é possível ter consciência de nossa própria ignorância?
Confúcio, pensador Chinês que viveu há 5 séculos antes de nossa era teria dito:
“O verdadeiro conhecimento é saber a extensão da ignorância de alguém”
Pouco tempo depois, Sócrates, Filósofo grego, teria questionado o próprio oráculo de Delphos, após a consulta de Querofonte que o colocara como o Homem Mais Sábio da Terra, com a frase: “Só sei que nada sei”.
Nietzsche foi enfático em dizer sobre os inimigos da verdade:
“Convicções são inimigos mais perigosos da verdade do que mentiras” e Darwin, com sua minuciosa observação sobre a vida natural, desferiu: “A ignorância gera mais confiança do que o conhecimento”.
Porém, talvez, nenhum outro pensador tenha sido tão enfático e direto como Bertrand Russell, Filósofo, Matemático e Lógico do sec.XX, que em um ensaio de 1933, chamado “O Triunfo da Estupidez”, escreveu:
“A fundamental causa dos problemas é que no mundo moderno os estúpidos estão cheios de certeza, enquanto os inteligentes estão cheios de dúvidas.”
Todos eles, a seus tempos, se referiram ao que mais tarde seria conhecido como VIÉS COGNITIVO DA SUPERIORIDADE ILUSÓRIA.
A internet entrou em polvorosa com a notícia de que o humorista e apresentador Danilo Gentili pudesse pegar 6 meses de prisão. A prisão seria a pena legal para a condenação em primeira instância do julgamento da queixa-crime movida pela Deputada Maria do Rosário. As questões que mais se levantaram sobre o caso giram em torno da Liberdade de Expressão e a Censura do Estado.
Muitos influencers famosos se manifestaram a respeito, muitos julgando a pena exagerada, mas quando os discursos se reduzem ao embate Liberdade de Expressão e Censura do Estado, trata-se de uma batalha perdida. Não nos parece que alguém, em sã consciência, pudesse ser contra a Liberdade de Expressão e a favor de qualquer tipo de Censura Estatal. O povo brasileiro é escaldado por mais de 20 anos de arbitrariedades para saber que isso não faz sentido, apesar dos movimentos intervencionistas que vem se multiplicando desde 2013.
Essa redução se assemelha a quando se quer discutir o Programa Escola Sem Partido. De saída, seria uma loucura ser a favor de uma escola COM partido. No entanto, depois de muito desgaste e rótulos atribuídos de lado a lado, começa-se a entender que discutir o Programa Escola Sem Partido não parte de seu oposto desejo de uma escola partidária. Assim como discutir a punição de Gentili não parte da aceitação de que o Estado deva censurar o cidadão em sua inalienável liberdade de expressar-se. Se deixarmos nos levar por esse Espantalho, só cumpriremos agendas ideológicas.
A Censura
A primeira coisa que merece nossa atenção é a palavra Censura. Ao longo do tempo esse nome adquiriu conotação ligada às práticas da Ditadura Militar, onde censurar era proibir, coagir pela força, acompanhada inclusive, de ameaças de prisão ou tortura. Um artista ou qualquer cidadão vítima da censura tinha o dever de ficar calado. Na Ditadura não havia liberdade de expressão e só podia ser dito aquilo que era permitido pelo poder vigente que, invariavelmente, decidia na hora e através de agentes do Estado sem nenhuma qualificação para tal julgamento. Entendemos que essa arbitrariedade e todo tipo de autoritarismo deva ser repudiado em todos os seus níveis.
No entanto, a palavra Censura, assim como os nomes Voto de Censura, Moção de Censura são termos que possuem outras conotações, tanto no trato comum algumas vezes, quanto, e principalmente, no meio legislativo, embora sejam menos usuais e com menos peso do que adquiriu a conotação histórica mais comum. Uma nota de repúdio, uma discordância pública e até um olhar reprovador ou uma bronca que um pai dá no filho arteiro se constituem atos de censura. Nem de longe, portanto, se referem à censura estatal que Gentili alega estar sofrendo.
Nos regimentos internos das Casas Legislativas brasileiras (Senado Federal, Câmaras de Deputados e de Vereadores), estão previstos Votos de Aplausos, Congratulações, Louvor, Solidariedade ou Censura a serem dados pelos seus integrantes a membros da sociedade e até a entidades, nacionais e do exterior. Quando o requerimento tem a unanimidade da casa, ele passa a se chamar Moção, mas quando somente um ou alguns legisladores assinam, ele se chama Voto. Se um ato, entendido assim por algum parlamentar, merecer algum repúdio da instituição, pode-se requerer um voto de censura a seu autor, da mesma forma que se pode requerer um voto de louvor para alguém que tenha feito algo digno dele. Censura, nesse caso, se equivale a reprimenda, um repúdio, um desagravo.
Em uma breve busca no site do Senado Federal, por exemplo, vemos que em Julho de 2009 foi apresentado Voto de Censura contra o Presidente Lula devido as declarações do mesmo sobre senadores que seriam “bons pizzaiolos”. O Voto de Censura é uma forma do Senado e das Instituições Parlamentares do Brasil repudiar falas e atos civis que os atinjam e afetem tanto sua imagem institucional, quanto estejam em desacordo com alguma política consensual interna da instituição. É algo previsto em seu regimento interno. E não passa disso. Não tem efeito judicial, embora possa ser arrolado como prova a partir da forma como se demonstra sua necessidade.
No ano de 2008, a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado aprovou Voto de Censura contra o Parlamento Europeu pela aprovação da nova lei de imigração. A aprovação aconteceu porque a justificativa trazia o desacordo que a medida impunha aos tratados e convenções internacionais de proteção aos direitos humanos. Na mesma seção foi aprovado um Voto de Congratulação à participação brasileira nos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Pequim. Trata-se disso apenas: a manifestação institucional a que os representantes eleitos do povo brasileiro têm garantido por seus estatutos internos.
Em Junho de 2016, após a Senadora Regina Souza ter sido alvo de preconceito do humorista no Twitter, o senador Paulo Paim resolveu emitir um Voto de Censura ao comediante. Como vimos, esse documento nada tem nada a ver com impedi-lo ou proibi-lo de falar, mas de um repúdio à sua fala preconceituosa. Gentili, manipulando sua audiência e a opinião pública, quis dar a entender que estaria sendo censurado e impedido de falar, porém nunca houve isso.
Em vídeo divulgado em suas redes, Gentili ridiculariza o documento de repúdio do Senado por estar escrito “Senado Federel”, mas em nenhum momento admite ou retira as palavras preconceituosas dirigidas à senadora Regina chamando-a de “tia do café”. Contra o Senador Paim, Danilo não diz praticamente nada. Chama de analfabeto quem escreveu o envelope, mente dizendo que é alvo de censura do Estado, mas pouco ou nada diz sobre Paulo Paim. Seu alvo, ao que tudo indica, parece ser preferencialmente as mulheres.
No mesmo ano, quando um tweet seu foi trazido à tona no caso do estupro coletivo no RJ contra uma garota de 16 anos, Danilo processou na justiça uma jornalista da Veja e o apresentador Trajano dizendo que essa associação atentava contra sua honra. Perdeu em ambos os processos, porém se a justiça tivesse dado ganho a ele, como seria sua reação à prisão de ambos?
Uma ótima matéria do The Intercept Brasildetalha esse e outros casos em que Gentili usa o mesmo expediente que, hoje, ele protesta e se vitimiza. Desta feita, porém, Gentili foi condenado não porque se recusou a se submeter a um ato de censura que o proibia de fazer aquilo que ele chama de humor, mas sim porque incorreu em crime de injúria na forma da Lei. O mesmo que ele recorreu quando fora contra si. Gentili jamais foi censurado na conotação que ele quis dar, embora tenha tentado e conseguido manipular a opinião pública para dar esse sentido ao ocorrido, ao mesmo tempo em que aciona a justiça sempre que se vê atacado em sua “honra”.
Como podemos perceber, seus alvos preferidos parecem ser as mulheres. Sua reação quando recebeu uma notificação extra-judicial da Câmara dos Deputados para que se explicasse acerca de alguns Twitts publicados contra a Deputada Maria do Rosário, que se sentira ofendida por ele, toda sua misoginia veio à tona, com ofensas à sua honra com conotação sexual e expondo toda a sua macheza ao esfregar o envelope em sua genitália antes de enviar de volta mandando a deputada enfiar a notificação em sua bunda.
Essa atitude está prevista em nosso Código Penal em seu artigo 140, que tipifica o crime de injúria da seguinte forma:
O que realmente importa…
Se conseguimos demonstrar a manipulação e a hipocrisia de Danilo Gentili até aqui, talvez seja hora de discutirmos o que realmente importa. Da mesma forma que há sutilezas quando se indaga acerca dos limites do humor, há diversas sutilezas quando indagamos sobre o que é ofensivo ou não. Onde estaria o limite entre perseguição política com cerceamento da liberdade no exercício de cargo público e o humor de Danilo Gentili? Onde estaria o limite entre a liberdade de dizer o que quiser sobre outrem e o direito à dignidade da pessoa humana?
O que motivou a notificação da Procuradoria da Câmara dos Deputados para Danilo Gentili foi esse twitte publicado por ele ironizando Maria do Rosário:
Ao receber a notificação da Câmara, Danilo tinha algumas alternativas ao que fez: justificar seu post, demonstrando que se tratava de uma ironia e uma suposição, já que Maria do Rosário teria defendido José de Abreu na confusão ocorrida em um bar japonês em São Paulo, quando, bêbado, o ator cuspiu em um casal que o ofendia. Poderia retirar o que disse, reconhecendo que, mesmo ela tendo defendido o ator, ele, Danilo, não poderia prever o que ela faria na suposição que ele construiu, ou então, simplesmente, não responder nada e deixar seus advogados cuidar do caso.
No entanto, Gentili resolveu ser sexista, misógino e ofensivo (chamando isso depois de humor), rasgando a notificação, chamando uma mulher de PUTA, esfregando a notificação picada na genitália e mandando de volta recomendando que ela enfiasse tudo na bunda. Não parece-nos, sob qualquer parâmetro razoável, que se possa olhar o caso como se tratando de humor. Ele simplesmente manipulou para capitalizar ideologicamente o ocorrido. Embora procurasse ser irônico ou sarcástico, Danilo atacou covardemente uma pessoa, uma cidadã, independente da função que exerce.
Talvez, quem esteja defendendo Gentili possa considera-lo mais humano que Maria do Rosário, pois coloca seu direito à Liberdade de Expressão acima da honra e da dignidade de Rosário. Ou então consideram que ela merecesse ser destratada assim por ser política ou mulher. Será que essa postura difere muito daquela que considera que ela não deva ser estuprada porque não merece? Mas nesse ponto, o próprio Danilo pensa diferente, em show recente fez uma piada dizendo que discordava de Bolsonaro, pois Maria do Rosário mereceria sim ser estuprada.
Por que sobrepor uma liberdade a outra? Por que a liberdade de se expressar é superior à liberdade de ter sua honra e dignidade respeitada?
Cabe, ao final, talvez, uma reflexão sobre Liberdade. Não nos parece que Liberdade seja algo a ser vivido pela metade. E isso, paradoxalmente, significa abrir mão de uma liberdade tão irrestrita que possa afetar a liberdade alheia. Um local onde apenas alguns são livres e outros não, não é um local livre. Liberdade é algo que não existe de forma plena se não for inteira e ser inteira significa que cada parte precisa se limitar para a liberdade geral de todos. Para quem pensa que liberdade é apenas um direito individual, não lhe parece importante a liberdade de todos, a não ser que ele se veja tolhido da sua. Hipócritas…
O crime de injúria é cercado de polêmicas sobre sua natureza considerada subjetiva. Dos 35 países que compõem a OEA (Organização dos Estados Americanos), cerca de apenas 18% não criminalizam as ofensas contra a honra (incluindo os delitos de difamação e calúnia), mas 82% criminalizam. Dos que criminalizam, muitos começam um processo de abolir a privação de liberdade para esses crimes, direcionando-os para serem apenados de forma pecuniária, ou seja, através de multas, direito de resposta, etc. Essa mudança vai ao encontro de muitas políticas de esquerda que trabalham o desencerceramento. Que Danilo deva ser punido, parece não restar dúvidas se levarmos tudo o que ocorreu e como ocorreu em consideração. Não se tem dimensão do quanto ele, fazendo o que faz e devido a influência que exerce, contribui para a situação e a própria violência contra a mulher em nossa sociedade. Sua prisão pode ser exemplar, mas pode também ter o efeito contrário se não vier acompanhada de uma análise das consequências e das mudanças socais desejadas. Será que sua prisão teria essa dimensão?
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