Seguindo seu plano malévolo, depois de ter dito que quer a “garotada longe da política”, Bolsonaro dá mais um passo rumo ao anti-intelectualismo que marca sua trajetória desde sempre. Desta feita, incorporando de vez o Efeito Dunnung-Kruger, o presidente cria uma mentira para basear a decisão de diminuir os investimentos nos cursos de Humanidades no ensino brasileiro. Conforme nos mostrou o relatório “Pesquisa Brasil”, feito pela empresa Clarivate Analytics para o CAPES, das 20 universidades brasileiras que mais produziram pesquisa, 15 são federais e 5 são estaduais. Todas públicas. Nenhuma particular, ao contrário do que afirmou o presidente em entrevista para seu cabo eleitoral Augusto Nunes da Jovem Pan.
Fora essa falsa afirmação (que é totalmente contrária à realidade brasileira), das 36 universidades do Brasil que estão no maior ranking educacional do mundo, encabeçadas pela USP em 1º e a UNICAMP em 2º, constam apenas 3 universidades particulares, porém não a que o presidente citou, mas a PUC-RJ, PUC-RS e PUC-PR.

A Realidade do Japão
Embora esse tipo de política tenha sido proposto pelo governo japonês em 2015, afetando na época 26 das 60 universidades públicas japonesas, houve vários e reiterados protestos da comunidade científica japonesa, inclusive dos reitores das duas melhores universidades do país, que se recusaram a cumprir a orientação: Universidade de Tokio e a de Kioto — únicas universidade japonesas no ranking das 100 melhores universidades do mundo.
Ademais a comparação de Weintraub é esdrúxula quando se analisa as necessidades japonesas e as brasileiras, coisa que um economista como ele deveria ponderar. Sobram vagas nas universidades japonesas por dois motivos básicos: 1) a população jovem vem diminuindo ano a ano devido à queda vertiginosa de taxa de natalidade (a quantidade de jovens japoneses na faixa de 18 anos — idade em que costumam entrar na universidade — caiu de 2 milhões em 1990 para 1,19 milhão em 2016) e 2) apenas metade dos alunos do ensino médio optam pelo curso superior, com a outra metade preferindo cursos técnicos ou ingresso direto no mercado de trabalho. Para se ter uma ideia, a taxa de ingresso no ensino superior nessa faixa etária na Coreia é de 82%.
O presidente da Universidade de Shiga, Sawa Takamitsu, acusou o governo japonês de anti-intelectualismo, já que essa política desastrosa iria, na verdade, diminuir as chances do Japão melhorar nos rankings mundiais. Em editorial intitulado “Humanidades sob ataque”, no jornal Japan Times, Takamitsu escreveu:
Estas são propostas ultrajantes e não posso tolerar anti-intelectuais distorcendo as políticas do governo relacionadas com o ensino superior.
(…) aqueles que estudaram [ciências humanas e sociais] têm faculdades superiores de pensamento, julgamento e expressão, que são exigidos dos líderes políticos, burocráticos e empresariais. E a base para essas faculdades é um espírito crítico robusto.(…)
O fundamento das sociedades democráticas e liberais é um espírito crítico, alimentado pelo conhecimento das humanidades. Sem exceção, os estados totalitários invariavelmente rejeitam o conhecimento nas humanidades, e estados que rejeitam tal conhecimento sempre se tornam totalitários.
Em direção a esse contundente depoimento, o próprio Conselho de Ciências do Japão publicou declaração contrária a essa política, escrevendo:
Nós vemos como nosso dever produzir, aprimorar e transferir relatos aprofundados e equilibrados do conhecimento sobre a natureza, os seres humanos e a sociedade.


Capacidade individual de encontrar e definir problemas e buscar soluções independentes; capacidade de apresentar um ponto de vista logicamente; capacidade de comunicar em línguas estrangeiras; educação em artes liberais; e respeito pela diversidade e a capacidade de colaborar com outras pessoas na execução de projetos.
Especialistas em ciências e engenharia com ampla formação educacional que inclui humanidades e ciências sociais; e, especialistas em ciências humanas e ciências sociais com ampla formação educacional que inclui conhecimentos básicos de tecnologias avançadas, matemática e ciências.
Capacidade de usar informações de forma eficaz, permitindo que os indivíduos coletem e selecionem informações de alta qualidade, usando essas informações para resolver problemas.
Hoje a reforma proposta pelo governo japonês perdeu totalmente força, primeiro porque, de fato, se não faz sentido sequer para a Federação da Indústria do Japão, a proposta se torna inútil, mas também porque o Ministro da Educação Hakubun Shimomura renunciou ao cargo por estar envolvido em superfaturamento do Estádio Nacional de Tokio. Nosso ministro do MEC, porém, aceita e recomenda seguir as orientações ideológicas de um corrupto porque vai ao encontro de suas precárias crenças ideológicas.
Aqui no Brasil, encabeçada pela ANPOF (Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia), mais de 27 entidades e associações de pesquisadores na área de humanidades assinaram uma nota de repúdio contra as declarações de Bolsonaro e Weintraub.
Apologia à Filosofia
A Filosofia talvez seja a obra mais importante que a humanidade logrou fazer. Pré-requisito a toda teorização científica, inclusive para validar sua metodologia, a Filosofia dota e exige rigor racional e responsabilidade sobre o que se diz acerca do mundo. Como as áreas que Weintraub menciona irão prosperar sem a dimensão e a reflexão filosófica sobre seus fazeres técnicos? Como aprender e exercer veterinária ou enfermagem sem bioética, lógica, epistemologia? Sem refletir sobre os impactos sociais da sua atividade no meio em que o profissional atua? Sem ter as técnicas e domínio das ferramentas do raciocínio abstrato enquanto base de todo ensino de Filosofia?
Se nos permitirmos concordar com a Federação das Indústrias do Japão de que o futuro irá precisar de pessoas capazes de usar informação de forma eficaz, coletando e selecionando as de alta qualidade para resolver problemas concretos e complexos da realidade, é preciso que saibamos que o ser humano só conseguiu isso, historicamente, a partir do advento de uma nova forma de pensar, abandonando as mistificações e as explicações míticas e desenvolvendo um raciocínio abstrato para interpretar e agir na realidade segundo seus interesses.
Quando o pensamento filosófico nasce na região grega da Jônia, na cidade de Mileto, sua emergência é concomitante ao alto desenvolvimento econômico e comercial da região. A multiculturalidade, o contato próximo com colônias orientais na região e a constatação que o modelo anterior mítico explicativo da realidade grega, baseada em Homero e Hesíodo, variava nas outras culturas, provocaram reflexões que propiciaram o desenvolvimento de novas formas e abordagens explicativas.
A Filosofia enquanto campo de conhecimento irá desenvolver ao máximo a capacidade de abstração humana, trazendo como resultado a extração de princípios gerais que não demandam utilidade prática imediata, mas que podem ser aplicados em vários outros campos, técnicas, competências e habilidades. É o conhecimento pelo conhecimento como base para todo o desenvolvimento tecnológico.
Dois exemplos podemos trazer para ilustrar o quanto é patético o pensamento do governo brasileiro em relação às humanidades e, especialmente, à Filosofia. Não há ciência e tecnologia sem as ferramentas que a Filosofia desenvolve a quem se dedica, minimamente, a ela.
Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo, possui duas histórias atribuídas a ele que ilustram a importância do pensamento abstrato no desenvolvimento da civilização ocidental. A primeira nos remonta ao Egito. Em suas diversas viagens, quando lá chegou, Tales percebeu que os agricultores egípcios mediam à sua maneira as áreas que compunham as terras férteis nas margens do rio Nilo. A cada cheia e vazante, as medições deveriam ser feitas novamente para que cada um ficasse com sua área devida e começasse o cultivo agrícola da região. Tales, filósofo e observador, assistiu as medições feitas, calculou as áreas e suas relações e com seu raciocínio abstrato criou a Geometria. Ou seja, abstraiu princípios gerais daqueles cálculos e medições que puderam ser aplicados em outras áreas práticas para além das demarcações de terras às margens do Nilo.
Em outra viagem para Babilônia, Tales tomou conhecimento dos cálculos astrológicos que mediam distâncias e trajetórias de estrelas e planetas, seja para efeito de períodos de plantio e colheita, seja para sortilégios e previsões astrológicas relacionadas ao humor e caráter humano. Com sua capacidade de raciocínio abstrato criou a Astronomia ao prever e acertar a primeira eclipse grega ocorrida em 585 a.C.
Uma técnica, um saber prático, conquistado via tentativa e erro, mesmo que tenha originado grandes civilizações do passado, é incomparável à capacidade que o raciocínio abstrato pode proporcionar no desenvolvimento e avanço da civilização. E isso só é possível com pessoas cuja formação inclui o aprendizado das ferramentas oferecidas pelo ensino da Filosofia.
Por fim, não podemos nos furtar de mencionar as palavras de Audrey Azoulay, a ex-diretora-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), por ocasião do dia da Filosofia em 2017. Para ela, além de apaixonante, a disciplina de Filosofia conscientiza mentes sobre o exercício do pensamento e sobre o confronto racional de opiniões, ajudando a construir uma sociedade mais tolerante e respeitosa:
Para a UNESCO, a filosofia também é o meio de liberar o potencial criativo da humanidade, e fazer emergir as novas ideias. A filosofia cria condições intelectuais para a mudança, o desenvolvimento sustentável e a paz
E complementa:
Há uma necessidade urgente de filosofia. Ela não fornece respostas, mas nos permite fazer as perguntas corretas. Como escreveu o poeta Rabindranath Tagore, ela nos convida a ‘sair dos limites de nossa sensibilidade e de nossa visão mental para alcançar uma liberdade mais ampla
Talvez seja exatamente nesse ponto que reside a ojeriza do atual governo ao ensino de humanidades e, especialmente, da Filosofia e Sociologia. O fundamentalismo religioso, a visão tacanha e restrita de mundo e o autoritarismo intransigente e sem diálogo que promove a polarização atual protagonizada por Jair Bolsonaro e seus ministros, entra em choque frontal com tudo o que a Filosofia promove e desenvolve para quem se dedica a ela. Eliminá-la, exaurir os cursos cortando recursos e financiamento de pesquisa é construir a hegemonia anti-intelectual e autoritária de um governo cuja missão é oprimir e entregar o país para a exploração estrangeira, reduzindo a população a mero estoque de mão de obra barata e sem direitos. Não se trata de economizar o dinheiro do contribuinte para o que não importa, mas de retirar do contribuinte e da população toda e qualquer possibilidade de construirmos democraticamente, através do diálogo, uma sociedade mais justa e humana.
Iremos lutar. Iremos resistir.
Referências:
Gazeta do Povo: “O governo japonês prometeu acabar com cursos de humanas. Mas o que realmente aconteceu?” — https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/o-governo-japones-prometeu-acabar-com-cursos-de-humanas-mas-o-que-realmente-aconteceu-2g4294xar711bks4klx0i1rnj/
Exame Abril: 36 universidades do Brasil entraram no maior ranking educacional do mundo — https://exame.abril.com.br/carreira/36-universidades-do-brasil-entraram-no-maior-ranking-educacional-do-mundo/
Investe São Paulo: 99% das pesquisas são feitas pelas universidades públicas — https://www.investe.sp.gov.br/noticia/99-das-pesquisas-sao-feitas-pelas-universidades-publicas/
Japan Times: Humanidades sob Ataque por Takamitsu Sawa (Universidade de Shiga) — https://www.japantimes.co.jp/opinion/2015/08/23/commentary/japan-commentary/humanities-attack/#.WV23xYTyt1v%C2%A0
Declaração do Conselho Executivo do Conselho de Ciência do Japão: http://www.scj.go.jp/en/pdf/kohyo-23-kanji-1e.pdf
Keidanren: Basic Thinking on Education Reform — https://www.keidanren.or.jp/en/policy/2016/030_overview.pdf
UNESCO: filosofia ajuda a construir sociedades mais tolerantes e respeitosas — https://nacoesunidas.org/unesco-filosofia-ajuda-a-construir-sociedades-mais-tolerantes-e-respeitosas/
Anpof: NOTA DE REPÚDIO A DECLARAÇÕES DO MINISTRO DA EDUCAÇÃO E DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA SOBRE AS FACULDADES DE HUMANIDADES, NOMEADAMENTE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA — http://www.anpof.org/portal/index.php/pt-BR/artigos-em-destaque/2075-nota-de-repudio-a-declaracoes-do-ministro-da-educacao-e-do-presidente-da-republica-sobre-as-faculdades-de-humanidades-nomeadamente-filosofia-e-sociologia
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