Introdução
Este texto será dividido em quatro artigos que originará quatro vídeos compondo uma série:
Parte 1: Propaganda, Percepção e Habitus
Parte 2: Pós-Verdade e FakeNews
Parte 3: Espiral de Silêncio, Agenda Setting e Janela de Overton
Parte 4: Doxa, Episteme e Racionalidade
O objetivo central é, partindo do suposto de que somos manipulados pelas informações que nos chegam cotidianamente, analisar e explicar como essa manipulação se dá, quais suas condições de possibilidade e os mecanismos utilizados para que ela ocorra. Embora seja fruto de uma extensa pesquisa que levou vários meses, sua urgência se dá no momento em que o atual governo brasileiro de Bolsonaro resolve recriar o Ministério das Comunicações. Diante das acusações de fakenews que os aliados do governo sofrem, das mentiras e distorções cometidas pelo próprio mandatário do cargo, é de suma importância entender esses mecanismos e buscarmos, mais do que tudo, articular um pensamento que possa tornar a sociedade minimamente imune a seus efeitos devastadores.
Bolsonaro anunciando a recriação do Ministério das Comunicações
Procuraremos lançar mão de conceitos sociológicos, filosóficos, teorias de comunicação e psicologia para articular sobre o assunto, fornecendo ao final todas as referências das citações e fontes utilizadas para um maior aprofundamento do que será tratado. Não esqueçam de curtir cada texto e vídeo, se inscrever em nosso canal no Youtube e, se puder, contribuir para nosso Apoia.se para que mais textos e vídeos como esse possam ser produzidos na necessária promoção de reflexões e esclarecimentos em nossa sociedade.
Propaganda
Contrariando sua promessa de campanha de que não criaria mais ministérios, mas ao contrário, reduziria seu número (como fez com a Cultura), Bolsonaro anunciou a recriação do Ministério das Comunicações. No entanto, para além das atribuições originais criadas em 1967, que prevê a regulação dos serviços de radiodifusão, serviços postais e telecomunicações, bem como gerenciar políticas que visem a inclusão digital dos brasileiros, Bolsonaro tem como objetivo, segundo suas próprias palavras: “cuidar da comunicação do governo”. Ou seja, podemos estar diante da criação de um Ministério da Propaganda mascarado de “Comunicação”, cuja principal preocupação não será dinamizar e facilitar as estruturas comunicacionais do país, mas aumentar a eficiência da comunicação do governo como contra-narrativa para as críticas que recebe.
Joseph Goebbels — Ministro da Propaganda do 3º Reich, o governo nazista da década de 1930.
Apesar do binômio propaganda-poder ter se desenvolvido desde tempos antigos na História, foi no início do século XX — nos regimes autoritários e ditatoriais — que esse binômio se expressou de maneira mais emblemática, tornando-se fonte inesgotável de pesquisas e teorias explicativas sobre seus mecanismos, resultados e alcances. A criação da prensa móvel é considerada o fenômeno catalisador no desenvolvimento da propaganda moderna, o que proporcionou rapidez e larga escala à propagação de pensamentos políticos e ideológicos. Ao final do século XIX, com a guerra da Crimeia e a Guerra Civil americana, a propaganda se demonstrou uma forte aliada estratégica, assumindo uma posição não só de destaque, mas de suma importância para toda e qualquer pretensões de conquista e manutenção de poder.
Anúncio do D.I.P. — Departamento de Imprensa e Propaganda do governo Vargas na década de 1930.
Se em tempos mais antigos era o próprio Estado que municiava de informação a população, os avanços na impressão tipográfica na modernidade descentralizou a produção de conteúdo, o que fez com que os Estados autoritários adotassem departamentos oficiais responsáveis por tensionar as informações produzidas por órgãos independentes. Essa tensão dura até hoje, mesmo que admitamos que a imprensa corporativa tenda a defender muito mais seus próprios interesses do que exercer a fiscalização do poder público como poderia e deveria fazer.
Além de oferecer uma contra-narrativa para as críticas dos órgãos de imprensa, os departamentos oficiais de propaganda dos Estados também usavam de censura, cooptação e ataques para ter sua versão dos fatos hegemônica. Não raro, o próprio Estado financiava entre seus aliados, fora de seus quadros, órgãos de comunicação que ajudavam e contribuíam para reforçar a versão do próprio governo sobre a realidade.
Em seu livro The Watchdog Still Barks: How Accountability Reporting Evolved for the Digital Age (algo como “O cão de guarda ainda late: como os relatórios de responsabilidades evoluíram na era digital”) a experiente jornalista da CBS News e PHD pela Fordham University, Beth Knobel, afirma que nenhuma outra função da imprensa livre no mundo pode ser mais importante que o papel fiscalizador e monitorador do trabalho do governo. Afirma ainda, por ampla pesquisa publicada em seu livro, que, ao contrário do que se imagina, a era digital potencializou esse papel, apesar da aparente queda de credibilidade da imprensa devido a expansão observada de fontes alternativas de informação.
Embora o presente trabalho não afirme que as intenções de Bolsonaro seja a manipulação das informações e a anulação do trabalho da imprensa livre em fiscalizá-lo, não é difícil imaginar que suas históricas pretensões autoritárias, os ataques à imprensa, a rede de fakenews associada a seus correligionários e as investigações sobre como sua candidatura se tornou popular ao ponto de lhe dar vitória nas eleições, nos dê pistas reais do que está por vir com a recriação do Ministério das Comunicações nesse momento. Tampouco esse trabalho afirma que a imprensa livre seja isenta e mereça crédito irrestrito sobre aquilo que afirma. Nossa pretensão é discorrer sobre como nossa relação com os fatos opera e quais os mecanismos mais contundentes de manipulação podem ser acionados para mudar nossa visão de mundo e nos fazer aderir a afirmações das mais variadas sobre a realidade, sejam elas oriundas de órgãos oficiais, sejam elas oriundas de qualquer fonte pretensamente livre e isenta.
Sensação, Percepção e Experiência
Nossa relação cognitiva com a realidade não se dá de forma direta, mas mediada. Em um primeiro momento a mediação é feita pelo que chamamos de sensação, que se refere a um fenômeno psíquico básico, ou neurofisiológico, que resulta da nossa relação com estímulos físicos externos. Por exemplo, ao ouvirmos vários sons ao mesmo tempo, iremos conseguir distinguir apenas os que estão dentro do comprimento de onda que nossos ouvidos são capazes de perceber. Da mesma forma, toda ocorrência visual cuja cor emita ondas acima do violeta ou abaixo do vermelho não serão enxergadas. Portanto, todos os cheiros, cores, gostos, sons e texturas que experimentamos do mundo são dados sensoriais que, analisados, dizem muito mais a respeito da forma como sentimos fisicamente do que sobre a forma como o mundo fisicamente é.
Em um segundo momento, a realidade também se apresenta a nós para além das sensações. Uma informação sobre fatos ou a nossa própria presença em um evento podem despertar diversos afetos e significados em nós, ora determinados por diversos vieses pelos quais nossa mente opera, ora determinado por memórias, afetos e significados remotos atribuídos desde nossa socialização no mundo. Se, por um lado, as nossas sensações contam com certa estabilidade de nossos aparatos sensíveis, determinados biologicamente, as nossas percepções são singulares e variadas, já que se dão em camadas psíquicas que comportam aspectos sociais, simbólicos e culturais inescapáveis. Toda percepção está carregada de representações e juízos prévios baseados em memórias e experiências passadas revestidas de significados que, em geral, sequer estão claros para nós. Ao contrário da sensação, a percepção, portanto, é o aspecto subjetivo de nossa relação com o mundo.
A separação entre sensação e percepção, no entanto, é meramente pedagógica e se desfaz no tempo. Na medida em que o ser humano vai se desenvolvendo e adquire linguagem, praticamente toda sensação que experimenta passa a ser condicionada por suas percepções, ou seja, por toda referência cultural e simbólica internalizada em sua relação social com o meio ao longo do tempo. Isso equivale a dizer que toda possibilidade de experiência existencial humana se funda na linguagem, que se configura como base das relações mútuas que compõem a vida social.
Se nossa relação com a realidade é mediada por nossas percepções, então não somos um sujeito de conhecimento puro ou passivo, e tampouco teremos acesso a tal “realidade em si” (ou nôumeno). Assim como nos ensinou Kant, que dedicou seu pensamento filosófico à possibilidade do conhecimento humano: toda ciência só é possível na zona fenomênica, ou seja, lá onde o sujeito interage, pela experiência e através de categorias de entendimento, com o objeto do conhecimento. A fase criticista do pensamento kantiano irá promover, então, um estudo das categorias (ou como a razão consegue conhecer) dentro dos seus limites de alcance. Já no Prefácio da 2ª edição de sua grande obra, Crítica da Razão Pura, Kant estabelecia que algo que independesse de nossa experiência seria impossível ser pensado sem contradição, mas que, porém:
(…) desaparece a contradição se admitirmos que a nossa representação das coisas, tais como nos são dadas, não se regula por estas, consideradas como coisas em si, mas que são esses objetos, como fenômenos que se regulam pelo nosso modo de representação… (KANT, 2001)
É no iluminismo, portanto, que se forma a ideia de um público formado por pessoas racionais e autônomas que discutem e constroem consensos a partir de uma racionalidade comum e interesses comuns. É no iluminismo, também, que se formam as ideias de democracia e contrato social, protagonizadas por um sujeito autônomo e racional.
Isso tudo será colocado em causa depois, seja até o século XIX através de Hegel e Marx (ou mesmo pelos utilitaristas), seja através da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e outros pensadores. Constata-se que o próprio esquematismo racional de Kant irá sofrer franca influência e condicionamentos das dimensões socioculturais, de classe e/ou econômicas que, em última instância, formam e moldam a mentalidade do sujeito. Não irá mais se tratar de como um sujeito com certo aparato cognitivo autônomo (embora limitado) conhece o mundo a partir da experiência, mas, sobretudo, como essa mesma experiência, desde sempre, já condiciona o uso e configura esse aparato para que o ser humano interaja com o mundo, o conheça e se forme nele a partir de interesses, quase que invariavelmente, alheios à sua vontade.
Em seu livro intitulado “Conhecimento e Interesse”, Jürgen Habermas dedica o primeiro capítulo à Crise da Crítica do Conhecimento, oferecendo uma revisão bibliográfica e conceitual sobre o criticismo kantiano. Com isso chega a uma proposição sobre a realidade que nos ajuda a compreender porque até Kant as afirmações sobre a realidade é crítica em seus diversos aspectos:
A realidade constitui-se na moldura de uma forma vital da linguagem ordinária. Nesse sentido é real aquilo que pode ser experimentado de acordo com a interpretação de uma simbólica vigente. (…) Mas o intérprete, uma vez socializado em sua linguagem materna e motivado, em termos genéricos, para o exercício da interpretação, não opera em junção de regras transcendentais, mas ao nível dos próprios complexos transcendentais. Ele não pode decifrar o conteúdo da experiência de um texto, legado por tradição, senão em íntimo contato com a constituição transcendental de um mundo do qual ele, enquanto tal, faz parte. (HABERMAS, 1982, p. 214–215)
A palavra “Experiência”, de origem greco-latina, tem em seu mais profundo significado a marca da travessia externa ao perigo ou aos limites. Formada pelo prefixo Ex (fora), pelo radical Peri (perímetro, limite ou ‘per’, do indo-europeu como travessia, caminho) e o sufixo Entia (conhecer, aprender), o “experenciar” se constitui de uma viagem, uma travessia cheia de perigos que nos retorna vida, conhecimento. Suas acepções mais comuns dão conta tanto do sentido de teste, ensaio, experimentação, quanto de vivência, maturidade, aprendizado. Logo, trata-se de um sujeito que se ensaia, como nos diria Montaigne, grande influenciador do iluminismo posterior. Essa dimensão de travessia e de exposição ao mundo está intimamente ligada com a comunicação, pois é através da linguagem que construímos nossa percepção enquanto pré-requisito para cada passo em direção a experiências mais significativas.
Se estivermos no mundo construindo um ensaio de nós mesmos, sentindo e percebendo esse mundo através da linguagem e nos comunicando, é possível afirmar que não há experiência que não se funda na comunicação. Ou seja, toda experiência é, por si, coletiva e perfaz a construção intersubjetiva dos sujeitos falantes numa dada comunidade ao longo do tempo. A comunicação, então, cumpre um duplo papel: dota de sentido a experiência e permite expressá-la simbolicamente entre os participantes dela. Ou seja, é o processo comunicacional que funda, coletivamente, a experiência e nos faz humanos.
Pierre Bourdieu, sociólogo francês do século XX, que desenvolveu o conceito de Habitus.
Habitus
É ao conceito de Habitus, desenvolvido por Pierre Bourdieu, sociólogo francês do século XX, que iremos recorrer para compreender de que forma as estruturas sociais não apenas condicionam como em grande parte determinam campos de fala, compreensão e as experiências dos sujeitos. Bourdieu define Habitus da seguinte forma:
[…] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações — e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas […] (BOURDIEU, apud in (SETTON, 2002, p. 62)
Ou seja, se a percepção é o princípio mediador entre sujeito e a realidade, o Habitus é o princípio mediador entre o sujeito e sua percepção: princípio de correspondência irresistível entre as práticas do indivíduo e as condições sociais de sua existência, envolvendo, obviamente, as relações intersubjetivas comunicacionais. Mais do que isso, Habitus é uma subjetividade socializada que se estrutura socialmente nas e pelas práticas dos indivíduos em contato mútuo e, ao mesmo tempo, é estruturante do indivíduo que dela participa a partir de certo modo de vida coletiva.
Sendo o conceito de Habitus de Bourdieu muito próximo à ideia de complexos transcendentais de Habermas, é no habitus que se forma a chamada opinião pública que permitirá que as visões de mundo e as práticas dos indivíduos (inclusive o que ele pensa e como pensa) sejam manipuladas para fins que o próprio indivíduo desconhece.
Se o século XX foi marcado pela Indústria Cultural e a influência irresistível da Comunicação de Massas ao penetrar nos Habitus contemporâneos, construindo formas de ser dentro de um sistema que impõe um determinado tipo de existência, seja através da televisão, indústria cinematográfica, literatura ou imprensa, por outro lado, o advento da internet revolucionou o campo da comunicação ao permitir a criação de Habitus variados de narrativas contra-hegemônicas, onde a Teoria da Espiral de Silêncio poderia ter sido colocada em questão, porém a reforça.
Chegamos ao fim do primeiro texto/vídeo da série “Como Você é Manipulado”. Gostaríamos de pedir para que você curta e assine nosso Canal no Youtube e, se quiser e puder, nos ajude no financiamento desse trabalho que realizamos através de nosso Apoia.se (clique no link). Em breve publicaremos os outros textos/vídeos da série.
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Parte 1 da série “Como Você é Manipulado?” do Canal Gambiarra MiniDoc: estreia dia 30/06/2020 às 19:30h.
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Referências
AROUCA, F. B. Primeira Guerra Mundial: Propaganda, Imprensa e Cultura Visual. Boletim Historiar — Dossiê Violência no Sec. XX: entre traumas, memória e história, n. 17, p. 49–62, 30 dez. 2016. ISSN ISSN 2357–9145. https://seer.ufs.br/index.php/historiar/article/view/5956.
GJ, B. Percepção e Realidade. PsiqWeb, 2005. Disponivel em: <http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=206>. Acesso em: 14 jun. 2020.
HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Tradução de José N. Heck. Rio de Janeiro: Zahar, 1982
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 5ª. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
PIMENTA, S. B. B.; CALDAS, R. S. Estudo introdutório sobre desenvolvimento da percepção infantil em Vigotski. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, São João del-Rei — MG, n. 7, p. 179–187, jul-dez 2014.
SETTON, M. D. G. J. Uma teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 20, p. 60–70, 2002. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000200005 acesso em 13/06/2020.
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